A maneira mais direta de levar essa discussão adiante é digressão. Isso é o que a história do capitalismo sugere, e muito mais o faz, além disso.

Para começar com o básico incontroverso, em uma economia sofisticada financiarizada, dívida e poupança são conceitos complementares, credores correspondem a devedores, ativos correspondem a passivos. Em um nível mais básico de atividade econômica e análise, contudo, esta simetria desmorona. Em um nível mais fundamental, a poupança é simplesmente consumo deferido, que – mesmo primordialmente – se divide em duas formas distintas.

Quando a produção não é imediatamente consumida, ela pode ser acumulada, ou seja, conservada para consumo futuro. Comida armazenada é o exemplo mais óbvio. Em princípio, uma economia de sofisticação financeira quase ilimitada poderia ser
construída sobre este pilar apenas. Um grão excedente poderia ser emprestado para consumo imediato por outra parte, criando uma relação credor-devedor e a oportunidade para que instrumentos financeiros surgissem. O excesso de produção em um nó da rede social poderia ser traduzido em um acúmulo monetário ou em algum tipo de ativo financeiro ‘de papel’ (produzindo um passivo circulante). O patente anacronismo envolvido neste modelo econômico abstrato, que combina produção primitiva com relações sociais ‘avançadas’ (de um tipo implicitamente liberal) é razão o suficiente para suspendê-lo neste ponto.

O outro tipo (quase) igualmente primitivo de poupança é de maior importância para o argumento a ser desdobrado, porque já é embrionicamente capitalista. Em vez de simples acumulação, a poupança pode tomar a forma de ‘produção indireta’ (Böhm-Bawerk), na qual o consumo imediato é substituído não por um acúmulo, mas por meios de produção indiretos (uma digressão). Por exemplo, em vez de caçar, um selvagem empreendedor poderia passar tempo elaborando uma arma – consumindo o tempo de produção permitido por um excedente anterior de alimentos, a fim de melhorar a eficiência da aquisição de comida, indo para a frente. A poupança, então, se torna inextricável da tecnologia, deferindo a produção imediata em prol da produção futura melhorada. Os horizontes de tempo são estendidos.

Assim como com o exemplo anterior (simples acúmulo), o potencial para financiarização da produção indireta é, em princípio, ilimitada. Nosso tecno-selvagem poderia emprestar comida a fim de elaborar uma ponta de lança, confiante – ou,  pelo menos, especulativamente assumindo – que o aumento da eficiência de caça no futuro tornará a amortização da dívida facilmente suportável. Um ‘vínculo’ poderia ser inventado para selar este acordo. Investimento tecnológico significa que a história propriamente dita começou.

Crueza e anacronismo à parte, nada aqui ainda é economicamente controverso, dado apenas o pressuposto imperturbável de que o propósito final – ou teleologia governante – é o consumo. A estrutura temporal do consumo é alterada, mas a poupança (em qualquer destas formas básicas e perenes) é motivada pela maximização do consumo no longo prazo. Suspensão e digressão são subordinadas dentro de uma rígida relação de meios e fins, que é a economia em si mesma. As escolas clássica, esquerdo-marxista, neoclássica e austríaca não têm quaisquer discordância significantes sobre este ponto. Uma digressão mais profunda é necessária para perturbá-lo.

Para que serve o cérebro? Ele, também, é uma digressão. A história evolutiva parece favorecer cérebros de maneira apenas muito parsimoniosa, porque eles são caros. Eles são um meio para a elaboração de comportamentos complexos, exigindo um investimento antecipado extravagante de recursos biológicos, contado, de maneira mais primitiva, em calorias. Uma espécie que possa se reproduzir (e cujos indivíduos possam se nutrir) sem extravagância cefálica, o faz. Este é, esmagadoramente, o caso normal. Construir cérebros é uma digressão biológica relutantemente tolerada, sob rigorosa subordinação teleológica – deveríamos dizer ‘teleonômica’.

‘Otimize a inteligência’ é, tanto para a biologia quanto para a economia, um imperativo mal concebido. A inteligência, ‘como’ o capital, é um meio, que encontra sua única inteligibilidade em um fim mais primordial. A autonomização de
tais meios, expressa como um imperativo inteligênico não-subordinado ou tecno-capitalista, contraria a ordem original da natureza e da sociedade. Ela é um digressão que escapa, mais facilmente perseguida através do Marxismo de Direita.

Marx tem um grande pensamento: os meios de produção se impõem socialmente como um imperativo efetivo. Para qualquer esquerdista, isto é, claro, patológico. Como já vimos, a biologia e a economia (de forma mais geral) estão dispostas a concordar. A digressão por si só é uma perversão da ordem natural e social. Defensores do mercado – os austríacos mais proeminentemente – tomaram o lado da economia contra Marx, negando que a autonomização do capital seja um fenômeno a ser reconhecido. Quando Marx descreve a burguesia como órgãos robóticos do capital auto-direcionador, a velha resposta liberal tem sido defender a humanidade e a agência da classe economicamente executiva, como expressa na figura do empreendedor.

O Marxismo de Direita, alinhado com a autonomização do capital (e completamente despojado da absurda TVT), tem sido uma posição não ocupada. A assinatura de seus proponentes seria uma defesa da acumulação de capital enquanto um fim-em-
si-mesmo, contra-subordinando a natureza e a sociedade como um meio. Quando a otimização de inteligência é auto-montada dentro da história, ela se manifesta enquanto digressão que escapa, ou acumulação de capital real (que é mistificada por sua representação financeira). Crudificada ao limite – mas não além – ela é robótica geral (produção indireta escalada). Talvez não devêssemos esperar que ela seja claramente anunciada, porque – estrategicamente – ela tem toda a  razão para se camuflar.

O Marxismo de Direita faz previsões. Há uma de particular relevância para esta discussão: teorias de deficiência de consumo para o sub-desempenho econômico serão cada vez mais enfatizadas conforme a dinâmica ultra-capitalista se introduz historicamente. Em sua fase inequivocamente robótica – quando a inteligênese do capital social explodir (como manufatura auto-excitatória de cérebros-máquina) – a legitimação teleológica da produção indireta pelo consumo humano prospectivo rapidamente se deteriora em um absurdo. O conceito econômico (ainda dominante) de ‘sobre-investimento’ é exposto como uma alegação ideológica sobre a escalação da inteligência, feita em nome de uma humanidade original e tomando uma forma cada vez mais desesperada e provavelmente militarizada.

Na medida em que a questão econômica continua sendo: qual é a base de consumo que justifica este nível de investimento?, a história se torna cada vez mais ininteligível. É assim que a economia se desintegra. As especificidades exigem elaboração posterior.

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