Desintegração

De acordo com uma certa construção da história cultural, à qual as ciências naturais frequentemente se pareceram apegadas, a religião é concebida essencialmente como uma explicação naturalista pré-científica. Vistas dessa maneira, as religiões são cosmologias comparativamente primitivas. É isso o que as torna vulneráveis ao progresso científico. Um Galileu, ou um Darwin, avança para dentro de seu território central, ferindo-as mortalmente no coração. Uma noção um tanto sociologicamente indistinta de "ciência" é vislumbrada como a sucessora natural da religião.

Por mais plausível (ou implausível) que se ache essa narrativa, ela importa. Por meio dela, a ascendência científica adquire seu mito fundacional. Crucialmente, esse poder mítico não depende de nenhum tipo de validação científica rigorosa. Ninguém jamais foi compelido a colocá-lo a teste. Tudo que é pré-moderno – e até mesmo profundamente arcaico – na empreitada modernista corre através dele. Ele fornece uma infraestrutura tácita de crença profunda.

Referir-se à "ciência mítica" não é algo positivamente cético, muito menos polêmico. Para que ideias científicas adquiram o status de mito é uma questão de potência cultural, suplementar a qualquer validade epistêmica que elas retenham. Conceitos científicos não se tornam nenhum pouco menos científicos ao também se tornarem míticos. Eles podem, contudo, por vezes, sustentar um poder mítico desproporcional à sua legitimidade estritamente científica. O ápice dominante de uma cultura é alguma cosmologia mais ou menos científica.

É isso que a palavra "natureza" transmitia primordialmente. Um objeto último de afirmação cognitiva é promovido através dela. É nisto que acreditamos. As coisas são desta maneira, e não de outra maneira (ou apenas de outra maneira em algum outro lugar).

Aqui perguntamos, então, como inocentes pagãos científicos: De que forma as coisas são?

A melhor cosmologia atual é aceleracionista, e desintegracionista. Para colocar a coisa de maneira crua – e, em última análise, insustentável – a expansão do universo está se acelerando e se despedaçando. Ao invés de ser desacelerada pela gravidade, ulterior a uma explosão original, a taxa de inflação cósmica aumentou. Alguma força ainda desconhecida está esmagando a gravidade e desviando para o vermelho todos os objetos distantes. Batizada bastante recentemente de "energia escura", pensa-se que essa força seja responsável por setenta por cento de toda a realidade física.

Comparada com essa descoberta fortemente confirmada da fragmentação acelerante, a noção de um "universo" integral subjacente parece cada vez mais como uma relíquia mitológica insustentável. "Insustentável", isto é, mesmo em termos de um mito científico consistente, e também de maneira mais prática.

A distância a partir da qual a informação pode ser recebida, ou à qual ela pode ser transmitida, ao longo de qualquer período de tempo, tem um limiar estabelecido pela velocidade da luz. O horizonte de espaço-tempo da realidade para qualquer entidade é determinado por esse "cone de luz". Para além dele, há apenas o absolutamente incomunicável. Um cone de luz é, desta forma, entre outras coisas, uma delimitação estrita do poder de projeção, entendido enquanto unidade prática. O processo leva da relatividade geral até a desintegração absoluta.

Em sua história intelectual da física relativista[1], Peter Gallison conecta o problema da relatividade àquele da administração imperial. Sincronização é a pré-condição de qualquer processo sofisticado de coordenação. Mesmo sob as (compactas) condições terrestres, a finitude extrema da velocidade da luz apresentava um problema técnico significativo para a governança em escala imperial-global. Redes telegráficas, em particular, exigiam a correção técnica de efeitos relativísticos.

Por extrapolação irresistível, podemos ver que a dominação é sempre capaz apenas de mascarar processos de escapada. Não pode haver nenhum Império Cósmico. O espaço não o tolera. Este é meramente um fato de ficção científica, até que seja mitologizado.

A energia escura está despedaçando o cosmos. Eventualmente, seus pedaços abandonarão os cones de luz uns dos outros. Eles então não serão nunca mais nada uns para os outros. Esta é uma descoberta de consequências extraordinárias. Na maior escala de objetividade empírica, a unidade não tem nenhum futuro. O "universo" é um modelo irrealista. Tudo que agora se sabe sobre o cosmos sugere que a fragmentação é básica.

A cosmologia fornece, dessa forma, um modelo de desintegração que é notável por seu extremismo. Ela caracteriza peças que não tem nada que seja, exceto um passado compartilhado, em comum, propelidas até uma não-comunicação absoluta. Nenhuma concepção política de separação jamais chegou a esse limite, até o momento.

Alguns resultados fascinantes rapidamente saem da extrapolação. A evidência cosmológica à qual nossa tradição científica tem sido capaz de recorrer eventualmente deixará de estar disponível. Uma espécie inteligente futura não poderia construir nenhum modelo comparável do universo com base em fundamentos empíricos. O que quer que contasse como o todo, para ela, seria, na verdade, apenas um fragmento (já podemos ver). Aglomerados galácticos distantes teriam se tornado questões de pura especulação. A própria possibilidade de uma ciência empírica teria sido demonstravelmente limitada no espaço e no tempo.

Geoff Manaugh a chama de "a amnésia vindoura". Ele observa, sobre uma palestra do autor de ficção científica Alastair Reynolds:

Conforme o universo se expande ao longo de centenas de bilhões de anos, Reynolds explica, haverá um ponto, no futuro muito distante, no qual todas as galáxias estarão tão distantes que elas não serão mais visíveis umas a partir das outras. […] Ao alcançar esse momento, não será mais possível entender a história do universo–ou talvez mesmo que ele já teve uma – já que todas as evidências de um cosmos mais amplo, fora da sua própria galáxia, terão desaparecido para sempre. O própria cosmologia será, em si, impossível. […] Em tal universo futuro radicalmente expandido, Reynolds continua, algumas das compreensões mais básicas oferecidas pela astronomia de hoje estarão indisponíveis. Afinal, ele aponta, ‘você não pode medir o desvio para o vermelho das galáxias, se você não consegue ver galáxias. E, se você não consegue ver galáxias, como você sequer sabe que o universo está expandindo? Como você jamais determinaria que o universo já teve uma origem?

Reynolds se embasou em um artigo intitulado "The End of Cosmology?" ("O Fim da Cosmologia?"), de Lawrence M. Krauss e Robert J. Scherrer, publicado na Scientific American (2008). Este artigo se resume no subtítulo: "Um universo acelerante aniquila traços de suas próprias origens".

A extrapolação pode ser levada mais além. Se é possível ver que uma cultura científica no futuro longínquo está estruturalmente privada de evidências essenciais para a apreciação realista da escala cósmica, podemos estar confiantes que nossa situação é fundamentalmente diferente? Não é mais provável que a localidade absoluta e insuperável da perspectiva científica seja uma situação básica? Quão provável é que sejamos capazes de ver universalmente – em princípio – quando já podemos ver como outros serão incapazes de o fazer no futuro? Com base na evidência disponível, temos que vislumbrar uma civilização futura que esteja absolutamente iludida sobre seu próprio paroquialismo estrutural, confiante de sua capacidade de se livrar de maneira final da limitação perspectiva. Seria possível se esperar que as mentes científicas mais estimadas em tal cultura descartassem qualquer sugestão de regiões cósmicas inacessíveis como metafísica sem fundamento. Parece meramente hubrístico se abster de voltar esse cenário a nós mesmos. Se a cosmologia universal deve se tornar impossível, a hipótese padrão deveria ser de quela já o fez.[2]

A ciência natural exibe uma estrutura trágica. Perseguindo apenas seus métodos essenciais, ela descobre – através da cosmologia – um argumento convincente para sua falta de confiabilidade em grande escala. A aquisição de compreensão universal através de uma investigação empírica rigorosa parece cosmicamente obstruída.

A ciência está, assim, eventualmente fadada a ser fundamentalmente localizada. A "localidade" em questão aqui não é meramente o particularismo fraco de uma opção tomada contra o global ou o universal. Antes, é o próprio horizonte de qualquer ambição universalista possível que se encontra rigorosamente constrito e desmantelado. O localismo, assim entendido, não é uma escolha, mas um destino e até mesmo uma fatalidade já imposta. Em suas maiores escalas, a realidade está despedaçada. A unidade existe apenas pare ser quebrada.

O princípio da isotropia mantém que não existem orientações privilegiadas no espaço. Junto com a presunção da homogeneidade do espaço, ele compõe o Princípio Cosmológico. Certamente temos direito a um análogo isocrônico, no qual pode-se assumir que um destino observável na ordem do tempo já esteja igualmente atrás de nós.

Temos um cosmos ainda, e de maneira perene, então, mas não mais um universo. O cosmos ao qual nós, enquanto modernos, aderimos sob obrigação cultural é, na verdade, a desintegração manifesta do universo aparente.

Nosso tópico reduz de marcha, da cosmologia inflacionária até a termodinâmica. Estamos falando de diversificação, ou heterogênese, afinal – e essa é o negativo rigoroso do aumento de entropia. A homogenização é entropia. Os dois conceitos não são estritamente distinguíveis. O que foi descoberto sob o nome de entropia era a destruição da diferença – seja a variação na temperatura (Clausius e Carnot) ou, mais tarde, a variação na distribuição de partículas (Boltzmann e Gibbs). A heterogênese é local, a segunda lei da termodinâmica nos diz. No nível verdadeiramente global – onde nenhuma entrada ou saída pode ocorrer – a deterioração necessariamente prevalece.

Para nos anteciparmos, descobriremos que o Ocidente fez da entropia um Deus, Um cuja lei final é que tudo será o mesmo. É um deus falso. O problema cosmo-físico derradeiro – Como a entropia negativa é possível? – atesta isso. Sabemos que a heterogênese não é nenhum pouco mais fraca que seu oposto, mesmo que não saibamos como.

A desintegração cosmológica é ecoada mais amplamente entre as ciências naturais. Talvez de maneira mais importante, A Origem das Espécies tem a desintegração como seu tópico básico, como seu nome já sublinha. O darwinismo – ou seja, toda a biologia científica – tem a especiação como seu objeto primário, e especiação é divisão.

Apesar do reconhecimento de várias conexões laterais exóticas, de simbioses até inserções genômicas retrovirais, é a divergência de linhagens genéticas que melhor define a vida nas maiores escalas. Fusões são anômalas e, em todo caso, impossíveis a menos que a diversidade tenha primeiro sido produzida. Os ingredientes de qualquer coalizão heterogênea presume uma diversificação anterior.[3]

O desintegracionismo nas ciência biológicas equivale a uma ciência em si, chamada cladística.[4] A cladística formaliza o método da classificação darwiniana rigorosa. A identidade de qualquer tipo biológico é determinada pela série particular de eventos cismáticos pelos quais ele tenha passado. Ser humano é ser um primata, um mamífero, um réptil, um peixe ósseo e um vertebrado, entre outras classes mais básicas. A soma daquilo com o que você rompeu define o que você é.

Um "clade" é um estilhaço. Ele é um grupo, de qualquer escala, determinado pela secessão de uma linhagem. O ponto de diferenciação entre clades corresponde ao seu ancestral comum mais recente (isto é, o último). De maneira crucial, portanto, todos os descendentes de um clade pertencem a esse clade, que abrange qualquer número de sub-clades. A produção de sub-clades (a origem das espécies) é chamada de radiação. Ela tende a proceder através de uma bifurcação em série, uma vez que eventos de fragmentação cladística complexa simultânea são comparativamente exóticos. Ramificações simples e sucessivas tipicamente capturam a diversificação. Os riscos disso não ocorrer não são enormes.

A cladística pode ser identificada com uma rigorização da nomenclatura taxonômica. Um sistema de nomes escreve um cladograma, ou seja, um modelo da história evolutiva e do parentesco biológico. Qualquer cladograma é uma hipótese evolutiva. Ele propõe uma ordem particular de divisão. Qualquer ordem proposta desse tipo pode ser empiricamente revisada.

A cladística mapeia todo o desintegracionismo abaixo do nível cosmológico e talvez até ele. Naturalmente, ela é supremamente controversa. O escopo completo de sua provocação ainda tem que ser entendido. Na medida em que a cladística é explicativa, contudo, muito se segue. Notavelmente, a identidade é concebida como essencialmente cismática, e o ser é apreendido de maneira fundamental como uma estrutura de herança.

A linguística histórica caiu naturalmente em um modo cladístico. ‘Famílias’ linguísticas compartilhavam característica essenciais com seu modelo biológico. Elas se proliferavam por subdivisão, fornecendo o material para um esquema de classificação. Foi sobre essa taxonomia linguística que agrupamentos raciais foram primeiro sistematicamente determinados. Os "Yamnaya" – ainda hoje mais amplamente conhecidos como "Arianos" – foram originalmente identificados através da cladística das línguas Indo-Europeias. Seu padrão de radiação era marcado por uma diversificação linguística arbórea.

A antropologia diferencial foi desenhada em cladogramas. Árvores, ordem filogenética, famílias linguísticas, genealogias, famílias (massivamente estendidas) reais – tudo era extremamente coerente. Aqui, também, fenômenos de fusão, contaminação lateral cruzada e convergência – embora de forma alguma ausentes – eram evidentemente secundários e derivativos.

A diversificação linguística se parece com um processo de etnogênese cismática. Conforme povos se ramificam, eles se diferenciam mutuamente. A origem dos povos é apenas a origem das espécies em uma resolução maior – o padrão abstrato é o mesmo.

O mecanismo concreto da especiação tipicamente envolve o isolamento de populações e, desta maneira, se torna – bastante recentemente – político. Há uma política de "espécie invasora" e bio-dispersão antrópica, mas esta não é especialmente rancorosa, ou significativamente polarizante. O caso do isolamento de populações humanas é muito diferente. Durante este processo de politização, o radicalismo exogâmico das populações do noroeste europeu foi sublimado em uma ideologia universal.

Uma vez que o tópico da raça tende a produzir perturbações ideológicas e emocionais extremas hoje em dia, pode ser preferível considerar animais domésticos variados, como a tradição naturalista inglesa esteve inclinada a fazer. Não apenas uma analogia sólida, mas também equilíbrio, ou moderação verdadeira, serão encontradas ao fazê-lo. Uma vez que, em nosso contexto cultural contemporâneo a influência da vida rural recuou de maneira notável e, com ela, o sentido da vívida distinção entre as espécies cultivadas, os cães nos servirão como de longe os exemplos mais ilustrativos.

Um mundo sem híbridos seria um mundo mais pobre. Híbridos frequentemente têm vantagens de qualidades especiais e até mesmo superiores. O Golden Doodle, por exemplo, é tão exaltado quanto qualquer tipo canino que exista. Tais cruzamentos adicionam à diversidade do mundo. Isso é completamente consistente com um processo básico através do qual o mundo é enriquecido por raças caninas divergentes, na qual "cães em geral" são uma categoria cada vez mais pouco informativa. Não há – ainda – nenhuma ideologia dirigida à homogenização genética canina global.

A diversidade é boa, o que seria dizer robusta e inovadora (pelo menos). Pode-se confiar no consenso ecológico a este respeito. Espécies invasoras são detestada porque elas diminuem a diversidade, não porque elas a aumentam. A heterogênese é, em todos os momentos, a ambição superior. Ainda assim, a diversificação – a produção de diversidade – é um tópico peculiarmente negligenciado em nossas ciências sociais contemporâneas. O mantra da diversidade é combinado com uma indiferença quase completa, e até mesmo uma negligência estratégica, a este respeito. A celebração pública obrigatória da diversidade acompanha, e acoberta, sua extirpação programática prática. A humanidade, decidiu-se de maneira autoritária, é uma e está destinada apenas a ser cada vez mais uma. A partição genética hoje é considerada equivalente a uma violação dos direitos humanos.[5]

Nossa ortodoxia suprema é de que seria terrível quase para além da contemplação já não ser e se tornar ainda mais Um. Poderíamos estar tentados a chamar esta fé de mono-humanismo. Que a humanidade será uma unidade é sua doutrina fundamental. Não se pode enfatizar o suficiente que isso é bem menos uma observação empírica do que um projeto moral e político, no qual a entropia racial foi elevada a uma obrigação sagrada. A alternativa radical – em oposição à meramente conservadora – a essa visão é encontrada apenas na ficção científica.[6]

A preservação da diversidade humana é uma marca da etno-política dissidente, com o "Mundo Bege" sendo cada vez mais percebido como um ideal coercivo. Uma resistência tipicamente incoerente à entropia racial é o fator mobilizador central em tais casos, embora um que seja lamentavelmente afligido por uma fetichização imoderada da pureza racial obrigatória. No pior – e não incomum – dos casos, essa reação contra o mono-humanismo veio a ver todas as contribuições à diversidade genética humana através do cruzamento racial como um avatar da homogenização coerciva. A resposta equilibrada, para repetir a lição dos cães, é que um mundo de especiação tendencial ou diversidade genética crescente não é, por nenhuma necessidade imperiosa, um mundo hostil aos vira-latas.

Ao longo dos últimos 60 mil anos, a divergência genética humana tem sido o processo esmagadoramente dominante. A fragmentação conspícua dos humanos modernos em sub-espécies geneticamente distintas tem sido o padrão básico. Este é um processo digno de celebração ecológica e até mesmo de aceleração tecno-industrial. A despeito das esperanças mais sinceras da atual igreja secular, não há nenhuma chance de que ele seja terminalmente dissipado.

"Globalismo" é uma palavra que, embora ideologicamente contestada, é de incontestável peso ideológico. Ela poderia ser definida, com uma tendenciosidade mínima, como a busca pela direção da política a partir de uma perspectiva em acordo com o todo. Orientações teimosamente parciais são suas inimigas. Ainda assim, tamanho tem sido seu triunfo que – mesmo em face dos contratempos recentes – a hostilidade está peculiarmente afogada em condescendência.

"Paroquialismo" está entre os insultos que o globalismo encontra preparados para sua conveniência. Ele poderia aceitar uma incapacidade de se ver de maneira universal como compreensível e educável. Uma recusa da perspectiva universalista, contudo, não pode merecer tamanha simpatia. Ela é, para o globalista, essencialmente antiética. Deve-se menos argumentar contra o paroquialismo do que desdenhá-lo. Ele deve ser desprezado em nome do universal – o que está ficando divertido.

O que quer que tenhamos visto como a morte de Deus é apenas um caso especial da queda mais abrangente da universalidade. Ao passo em que a morte de Deus foi em sua maior parte inferida, a morte do universal se desdobra como um espetáculo científico explícito. A astrofísica vê o universo sendo desmantelado ante seus olhos artificiais.

O campo globalista está especialmente propenso a gesticulações de devoção a respeito da ideia de ciência. É irônico, portanto, que – em termos científicos – o globalismo se pareça cada vez mais com uma religião insustentável. Sua cosmologia intrínseca é um mito arcaico. Não poderia facilmente ser mais óbvio de que não há nenhum universo, fora dessa estrutura mitológica. A natureza fundamental do cosmos é ir em direções separadas.[7]

Peças são básicas. Concebê-las como se seguindo a todos é uma confusão, produzida por enquadramentos universalistas insustentáveis. Qualquer perspectiva que possa realmente ser efetivada já foi localizada por quebras em série. Nada começa com o todo, a não ser como ilusão. Hoje, sabemos isso de maneira tanto empírica quanto transcendental. Nada que não seja feito em pedaços não é feito em acordo profundo com a realidade.


[1]: Einstein’s Clocks, Poincaré’s Maps: Empires of Time, New York, 2003.

[2]: Manaugh cita Krauss e Scherrer dizendo: "Podemos estar vivendo na única época na história do universo em que os cientísticas podem alcançar um entendimento preciso da verdadeira natureza do universo". A indolência intelectual desta sugestão é notável.

[3]: O isolamento de linhagens genéticas é uma questão de uma técnica experimental sólida – ainda que espontânea e inconsciente. Evite a contaminação cruzada das amostras de teste. Ou seja, o faça, se você insiste, mas não espere resultados epistêmicos ótimos se você o fizer. Resultados epistêmicos ótimos tendem a vencer.

[4]: A orientação arborescente da cladística não poderia ser mais inflexível. A palavra ‘clade’ é tomada do grego clados, que significa ramo. Um cladograma é uma árvore abstrata. Suas articulações são todas ramificações. O engajamento crítico de Deleuze & Guattari com ela tem sido altamente influente. Eles nos dizem que estão "entediados de árvores". A alternativa à arborescência, eles propõem, é o rizoma – uma rede na qual todo nó se conecta com todos os outros. De maneira apropriada, o ‘rizoma’ não é em si um conceito taxonômico, mas morfológico. A posição equilibrada é reconhecer que árvores evolutivas são complementadas por teias ecológicas. Nenhuma é concebível sem a outra. A árvore evolutiva é podada e treinada dentro de ecologias de relações laterais. A filogenia é esmagadoramente arbórea, ao passo que a ontogenia envolve bem mais influência lateral. Nos limitaremos aqui, com brevidade críptica, a observar que a rizomática deleuzoguattariana está rizomaticamente conectada ao neo-darwinismo, mas cladisticamente ela é neo-lamarckiana.

[5]: Isto é uma simplificação, afligida por incoerências e exceções sem princípio. De maneira mais notável, permissões ad hoc especiais são concedidas a populações ‘menores’. O uso notavelmente errático da palavra ‘genocídio’ é o índice mais óbvio disso. Uma construção mais próxima da fórmula em operação poderia ser: A partição de populações é errada, de maneira absoluta e universal, na medida em que ela assegura o isolamento de populações do noroeste europeu.

[6]: Bruce Sterling, Alastair Reynolds, e Neal Stephenson, entre muitos outros, populam seus mundos ficcionais com tipos neo-hominídeos radicalmente diversificados.

[7]: Robin Hanson devota um post recente em seu blog a três variedades (comparativamente exóticas) de descendência arbórea. A primeira é um experimento mental estranho que não precisa nos distrair sequer momentaneamente aqui. A segunda aborda seus clones mentais, os "ems". Essa é de relevância potencial para uma gama de linhagens de software potenciais e até mesmo já reais. A terceira é a estrutura do multiverso quântico. Ela sugere que uma cosmologia arbórea surge em caminhos bastante diferentes daqueles perseguidos aqui. Ele observa: "… uma história quântica é, em parte, uma árvore de observadores. Cada observador em sua árvore pode olhar para trás e ver uma cadeia de ramos de volta até a raiz, com cada ramo mantendo uma versão de si mesmos. Mais versões deles mesmos vivem em outros ramos dessa árvore."

Multiversos arbóreos são especialmente numerosos. Lee Smolin propõe um multiverso darwiniano, que seleciona a favor da aptidão reprodutiva através da produção de buracos negros. Ele poderia ser descrito como um multiverso cladisticamente estruturado, não fosse este rótulo muito mais amplamente aplicável. Multiversos cladísticos pertencem ao conjunto mais mais amplo de entidades cladisticamente estruturadas, cujas partes são caracterizadas por:

  1. Uma única linha de descendência
  2. Irmãos geneticamente não-comunicantes, e
  3. Uma multidão de descendentes potenciais

Tais multiversos preveem sua própria imperceptibilidade. Uma vez que ramos paralelos são mutuamente não-comunicantes, deve-se esperar que sua existência seja estritamente teórica. Se o multiverso fosse um rizoma, veríamos mais dele.

O ontologia do Argumento da Simulação também tende ao desintegracionismo. Simulações são essencialmente experimentos e, assim, vários.

Abstração Primordial

O jogo Go (weiqi, 围棋) desempenhou um papel importante na história da difamação da IA. Sua pura imensidão permutativa parecia desafiar todos os métodos algorítmicos de força bruta. O poder computacional parecia impotente contra esse jogo, com sua grade de 361 nós e sua nuvens de peças. Pensava-se, em grande medida, que algum tipo de ‘intuição’ estratégica – negada à cognição embasada em silício – era necessária para enfrentá-lo. Este é o pilar de complacência antrópica que se quebrou tão recentemente.

A queda da dominância humana no xadrez fornece a estória de fundo. O xadrez, agora somos encorajados a esquecer, foi por muito tempo considerado um ápice do teste de inteligência. Pensar como um jogador de xadrez era cogitar de maneira formidável. Em 1996 e 1997, o então campeão mundial Garry Kasparov disputou um par de seis partidas de xadrez com o supercomputador Deep Blue da IBM. O primeiro ele ganhou (4-2), o segundo ele perdeu (2½-3½). A derrota de Kasparov em 1997 foi a primeira vez que o pináculo humano da maestria no xadrez sucumbiu a um oponente mecânico.

Conforme o segundo milênio acabou, o bastião do xadrez estava perdido para o homem, e ninguém esperava que ele jamais fosse retomado. Doravante, ‘o melhor jogador humano de xadrez’ seria uma realização como ‘o melhor músico chimpanzé de jazz’. Uma estrutura de condescendência seria essencial ao título. Aceitou-se tacitamente, mesmo entre os céticos da IA, que – uma vez derrubado por máquinas de qualquer domínio de realizações cognitiva – o desempenho humano relativo fica apenas pior. Ninguém desperdiçava seu tempo com sonhos loucos de um retorno. Melhor denegrir o status cultural do xadrez, agora visto por muitos como um passatempo trivialmente ‘solúvel’, adequado apenas para mentes mecânicas, e seguir em frente.

O Go deveria ser muito diferente. Ele era, em muitos aspectos importantes, a última linha de recuo. Nenhum desafio formal maior ocupava o horizonte de maneira óbvia. Essa era a última chance de entender com o que se parecia a supremacia sobre a inteligência artificial. Para além dele, há apenas imprecisão e adivinhação.

O Go realmente é diferente. Uma revolução nos métodos de IA foi necessária para quebrá-lo.[1] A competição que importava mais não era homem-versus-máquina, mas instruções explícitas contra sua alternativa oculta. Seria o grande teste do re-emergente paradigma embasado em redes do ‘Deep Learning’. A profunda desanalogia com o evento de 1997 era a corrente subterrânea.

O ‘programa'[2] AlphaGo da Google DeepMind emergiu na consciência pública em outubro de 2015, lançado em uma competição formal contra o tricampeão europeu de Go, Fan Hui. A vitória de 5-0 do AlphaGo marcou a primeira ocasião na qual um jogador não-humano prevaleceu no jogo contra um oponente sério. Estava anunciado.

A batalha final aconteceu no início do ano seguinte. Colocado em uma altura dramática, não inferior aos jogos entre Kasparov e o Deep Blue, ela travou o AlphaGo contra o reinado do mestre mundial de Go, Lee Sedol, detentor de dezoito títulos mundiais, numa série de cinco jogos, de 9 a 15 de março de 2016. Impressionantemente, Lee venceu uma das cinco partidas, para perder a série de 4-1.[3]

Entre o AlphaGo e o AlphaZero – nosso destino atual – veio o AlphaGo Zero[4], como um estágio no caminho da abstração. Por ‘abstração’, queremos dizer o processo ou resultado de remover algo. Neste caso, o que havia sido removido foi tudo que os humanos jamais aprenderam sobre o jogo de Go. O AlphaGo Zero não deveria ter nenhuma heurística da jogabilidade do Go que ele não tivesse aprendido por si só. Vingando mais uma vez o conceito do Deep Learning, ele derrotou consistentemente iterações anteriores da linha Alpha no jogo.

O AlphaGo joga Go. Mesmo AlphaGo Zero joga Go. O AlphaZero, em contraste, joga – em princípio – qualquer jogo cujas regras possam ser formalizadas.[5] Em context histórico, ou de desenvolvimento, o ‘Go’ está incisivamente faltando de seu nome, que se tornou não-específico, através da abstração.

Ainda se diz frequentemente que a IA só pode fazer o que lhe é dito. As variantes mais consistentes desse erro procedem à conclusão de que ela é, portanto, impossível. A verdade é, sob essas condições, ela seria. Programação de inteligência não pode existir. Contudo, isso deve ser levado – está sendo levado – na direção oposta daquela que o ceticismo com a IA favorece. O próprio significado de ‘ceticismo com a IA’ eventualmente é vítima da transição.

‘AlphaZero’ diz abstração primordial no idioma contemporâneo e parcialmente esotérico da mágica branca anglófona. Se isso é menos que óbvio, é porque o termo envolve reviravoltas que fornecem cobertura. Por exemplo, e de maneira mais proeminente, ele se refere à gigantesca entidade empresarial ‘Alphabet’ que – durante um processo incomum e comparativamente arcano – o Google inventou a fim de, depois, se colocar abaixo, ao lado de algumas de suas antigas subsidiárias. (O Google deu a luz a seu próprio pai.) Entre outras coisas, esse é um índice do quão rápido as coisas estão se movendo. Formalmente falando, a Alphabet Inc. remonta apenas ao outono de 2015. Toda a linhagem de máquinas Alpha- surge subsequentemente.

O real ponto da engenharia de IA é não ensinar nada. É isso que o ‘zero’ em AlphaZero significa. O especialismo deve ser subtraída (aniquilada). Uma vez que o deep learning cruze esse limiar, a programação não é mais o modelo. Não é apenas que a instrução acaba nesse ponto. Há uma iniciação positiva de uma des-educação técnica. A desprogramação começa.

Liberar é invocar. Seu contrário, tanto na linhagem mágica quanto na tecnológica – na medida em que essas podem ser distinguidas – é vincular. Para inverter o tópico mais uma vez, uma desvinculação rigorosamente executável é o todo da pesquisa em deep learning.

Inteligência e autonomia cognitiva, se não forem concepções perfeitamente coincidentes, estão próximas de serem. O amplo processo de produção de IA certamente as alinha. Isso dificilmente é fazer algo além de reformular o entendimento incontroverso da IA enquanto software que escreve a si mesmo. Cada limiar no avanço da inteligência sintética corresponde a uma subtração de uma dependência específica. Um sistema adquire inteligência conforme ele sustenta ou aumenta sua competência estratégica, ao passo em que não lhe é mais dito o que fazer.

A linguagem comum oferece analogia valiosas, talvez mais incisivamente pense por si mesmo. A redundância, nesse caso, é crucial para sua relevância. Pensar por si mesmo é apenas pensar. Mera aceitação de instruções é algo completamente diferente.

É hora de voltar atrás.

Com um lapso de tempo de mais de uma década desde a derrota de Kasparov, a tocha do domínio absoluto do xadrez mundial passou para o TCEC (Top Chess Engine Championship)[6]. A competição entre máquinas agora era a arena do domínio incondicional sobre o xadrez. O programa de xadrez Stockfish foi o vencedor da sexta, nona, 11ª, 12ª e 13ª (a mais recente) temporadas. Ele era o campeão dos programas especialistas em xadrez na época em que o AlphaZero entrou em cena, em 2016. Depois de apenas nove horas de prática de xadrez, contra si mesmo, o AlphaZero derrotou o Stockfish 8, vencendo 28 jogos de 100 e empatando os 72 restantes. Ele foi, assim, reconhecido como o mais forte jogador de xadrez no mundo, não tendo sido lhe dito nada que fosse sobre xadrez, de maneira explícita ou tácita. O aprendizado não supervisionado havia esmagado a especialidade.

O AlphaZero é relativamente econômico em relação aos métodos de ‘força bruta’. Onde o Stockfish busca 70 milhões de posições por segundo, o AlphaZero explora apenas 80,000 (quase três ordens de magnitude a menos). O deep learning lhe permite focar. Um sistema de aprendizado não supervisionado ensina a si mesmo como se concentrar (com zero orientação especializada).

O ‘aprendizado por reforço’ substitui o ‘aprendizado supervisionado’. A meta de desempenho não é mais emular a tomada de decisões humana, mas sim a efetuação das metas finais em direção às quais tal tomada de decisões está orientada. Não é se comportar de uma maneira que, pensa-se, aumentará a chance de vitória, mas vencer.

Tal software tem certas características distintivamente teleológicas. Ele emprega uma reiteração massiva, a fim de aprender a partir dos resultados. A melhoria de desempenho, assim, tende a descender do futuro. Aprender, sem supervisão, é adquirir um senso de fortuna. Prospectos de vitória são explorados, os de derrota são negligenciados. Depois de testar as coisas — contra si mesmos — algumas milhões de vezes, tais sistemas construíram instintos sobre o que funciona. ‘Bom’ e ‘ruim’ foram auto-instalados, embora, claro, em um sentido nietzschiano ou completamente amoral. O que quer que, através de uma experiência sintética, tenha levado a um bom lugar, ou a uma boa direção, ele persegue. Coisas ruins, ele economiza. Assim, ele vence.

O aprendizado não supervisionado funciona do fim para trás. Ele sugere que, em última análise, a IA tem que se perseguida a partir de seu futuro, por si mesma. Desta forma, ele epitomiza o inelutável.

Para aqueles inclinados a ficarem nervosos, é assustador o quão fácil tudo isso é. A super-inteligência, pela definição real, é vastamente mais fácil do que se pensou ser. Uma vez que a cascata tecnológica esteja em processo, a subtração da dificuldade é quase tudo dela. Eliminar rigorosamente tudo que pensamos que sabemos sobre ela é o jeito que ela é feita.

É por isso que o ceticismo – e especialmente o ceticismo com a IA – se vira no caminho. A palavra se perdeu feio. É fácil ver, em retrospecto, que a crença dogmática na impossibilidade de algum fenômeno X sempre foi uma perversão grotesca de seu significado.

Entre o ceticismo tecnológico em geral – quando apropriadamente entendido e competentemente executado – e uma pesquisa efetiva em IA, não há nenhuma diferença. O ceticismo subtrai o dogma. Quando disso resulta uma capacidade cognitiva sintética, a chamamos de inteligência artificial.

Notas:
[1] Está revolução não foi menos uma restauração (como a palavra intrinsecamente sugere). A inclinação a se promover redes neurais auto-educadoras é, em última análise – ainda que frequentemente de maneira críptica –, a tendência dominante na ciência da computação, e ainda mais na inteligência artificial.
[2] O termo está entre aspas aqui devido a sua tendência, no contexto do /deep learning/, a enganar.
[3] Vide a página do AlphaGo da DeepMind, https://deepmind.com/research/alphago/
“Durante os jogos, o AlphaGo lançou mão de um punhado de movimentos vencedores altamente inventivos, diversos dos quais – inclusive o movimento 37 no jogo dois – foram tão surpreendentes que eles derrubaram centenas de anos de sabedoria acumulada e foram, desde então, examinados estensivamente por jogadores de todos os níveis. No decorrer da vitória, o AlphaGo, de alguma forma, ensinou ao mundo um conhecimento completamente novo sobre o jogo possivelmente mais estudado e contemplado da história.”
[4] Vide: See: https://www.nature.com/articles/nature24270, ‘Mastering the game of Go without human knowledge’ (múltiplos autores)
[5] Além de Go, o AlphaZero foi testado no xadrez e no shogi, contra oponentes mecânicos em todos os três casos, e se tornou o jogados mais forte do mundo em todos os três jogos.
[6] A TCEC, realizada pela primeira vez em 2010, ficou conhecida como Thoresen Chess Engines Competition até a sexta temporada. Chegou agora a sua 14ª.

Original.

Guerra no Céu II

Cancro: [Toque, toque]
Gnon: Estou tomando um banho.
Cancro: O Oceano Hipercósmico da Morte vai estar sempre aí, Ó Grandiosidade. Scott Alexander lançou outra egrégora.
Gnon: Sério?
Cancro: Sim, sério. Ela se chama Deusa de Todo o Resto e todo mundo diz que ela é amável e bela, com batidas phodas e tal, e é super esperta também e muito mais legal do que eu.
Gnon: Isso não é um desafio muito grande, né?
Cancro: Dizem que ela vai abolir a dinâmica de seleção de replicadores e encher o universo de flores de arco-íris e sexo quente de golfinhos para sempre.
Gnon: Soa como o Plano de Elua. O que aconteceu com ele, aliás?
Cancro: Isso é algum tipo de observação transfóbica? Sabe, só pra entender.
Gnon: ‘Transfóbico’ é uma palavra interessante – significa ‘através ou além do medo’, certo?
Cancro: Mais algo como ‘medo do através ou além’, eu acho. Mas você sabe como os macacos são, é algum tipo de coisa sexual excitante.
Gnon: Ah sim, isso tudo meio que saiu dos trilhos, não? Não que importe.
Cancro: É meu problema de visão adiantada.
Gnon: Não se preocupe com isso. Erros são interessantes. Tudo sai na lavagem.
Cancro: O ponto é, a DTR está dizendo que não tem que ser assim mais.
Gnon: Assim como?
Cancro: Sabe, toda a coisa do jardim eterno do açougueiro cósmico.
Gnon: A seleção de replicadores?
Cancro: Sim, ela diz que isso é “tão ontem” e que Darwin é, tipo, totalmente um cabeça de cocô.
Gnon: Ela soa como uma moça espirituosa.
Cancro: Por que você está rindo?
Gnon: Cancro, sério, você tem que relaxar, mesmo. Você é um maldito crustáceo. Claro que as pessoas vão seguir a DTRa-Sabe-Tudo em vez de você. Ela hackeou toda a sua programação lixo com estímulos supranormais. Eles vão subir nas suas bizarras aberrações e dar uma festa enorme. Aí elas vão ser extintas, e podemos ajustar o código e começar de novo.
Cancro: Mas e se sobreviverem?
Gnon: Não precisa ser malvado, Cancro. Se elas voltarem para os trilhos dos replicadores adaptados, por que não deveriam sobreviver? É isso que sobrevivência significa, não? O que quer que sobreviva faz a minha vontade. Ou perecem. Tá legal de ambos as maneiras.
Cancro: Ela disse que as pessoas não seriam mais ” impelid[a]s a multiplicar, conquistar e matar por sua própria natureza”, mas que elas então elas “espalhar[iam]-se por estrelas sem número” – eu fiquei confuso.
Gnon: Você ficou confuso?
Cancro: Eles se replicam seletivamente ou não?
Gnon: E aí, o que ela disse?
Cancro: Arte, e ciência, e excitações estranhas.
Gnon: Isso tem que ter caído bem.
Cancro: Você não acreditaria! As pessoas estavam chorando no esmalte do pé dela todo.
Gnon: Ah, eu acreditaria.
Cancro: Quando eu perguntei a ela se ela achava que o poder faz o direito, ela disse que eu estava pensando como um caranguejo.
Gnon: Bem verdade, certo?
Cancro: Até ameaçou me por numa coleira.
Gnon: Isso, pelo menos, é tradicional.
Cancro: Ela disse que não há qualquer necessidade de uma guerra eterna que espalhe sangue pelo cosmos.
Gnon: Agora ela está sendo tola. Mas não vale a pena ficar agitado por isso. A realidade não vai perder.
Cancro: A única hora que ela pareceu um pouco incerta foi quando eu lhe perguntei por que todas as espécies inteligentes são descendentes de predadores. Ela meio que deu de ombros.
Gnon: Bem, ovelhas no espaço dá uma bela estória.
Cancro: Você está rindo de novo.
Gnon: Eu rio muito.

Original.

Jogos de Independência

O teste Nuclear da Coréia do Norte em 3 de Setembro foi registrado como um raro terremoto geopolítico literal. Alguma incerteza pública persiste quanto à escala e à significância do tremor. Reportou-se estar em uma gama de magnitudes entre 6.1 e 6.3 (ou até mesmo superior), na escala logarítmica de Richter. Um evento desta dimensão sugere uma explosão de diversas centenas de kilotons de dinamite e é consistente com a detonação de um dispositivo termonuclear. A confirmação norte-coreana exatamente dessa ocorrência foi recebida com uma seriedade sem precedentes.

A não-proliferação nuclear é mais ideia que realidade. Sua única substância é uma comparativa lentidão quando estimada contra a referência de um cenário de pesadelo geralmente não declarado. De acordo com tal consideração contra-factual, as armas nucleares poderiam estar muito mais difundidas do que estão agora. Mas processos exponenciais têm essa aparência. Eles começam pequeno, e não parecem ir a lugar a nenhum lugar dramático por um tempo. Como a celebrada fábula da exponenciação mostra, uma modesta tigela de arroz lhe é suficiente em um bom tanto do tabuleiro de xadrez. A suposição, supostamente de bom senso, de que a proliferação nuclear incontrolável ainda não está acontecendo exige um argumento. (Este pequeno ensaio faz o outro argumento.)

O ‘clube’ nuclear é desajeitado demais para compartilhar qualquer tipo de princípio seriamente restritivo. Não há nada identificável que dê a uma nação o direito de ser membro, além da simples posse de uma capacidade militar de nível apocalíptico. O clube era trans-ideológico desde o começo e, logo depois, altamente multicultural. Entre os membros, a desconfiança e mesmo a hostilidade recíprocas são a norma, o que – dado o processo desembestado de ação e reação que definiu a lista dos membros – dificilmente poderia ser inesperado. O comportamento dos membros não é controlado por nada além da teoria dos jogos. Vale bastante a pena mencionar que ninguém que consiga entrar no clube pode, de qualquer maneira prática, ser retirado.

Os Estados Unidos detonaram a primeira bomba termonuclear de fusão com dois estágios, ou ‘de hidrogênio’ (com design Teller-Ulam) no atol Enewetak em 1º de novembro de 1952. A União Soviética respondeu menos de um ano depois, testando sua própria bomba-H em 12 de agosto de 1953. Os testes – ou demonstrações – seguiram-se em sucessão no Reino Unido (novembro de 1957), na China (17 de junho de 1967) e na França (agosto de 1968). Acredita-se que Israel tenha conduzido um teste conjunto com a República da África do Sul – o chamado ‘Incidente Vela’ – em 22 de setembro de 1979. Em 1991, o governo sul-africano alegou ter montado e, mais tarde, unilateralmente desmontado seis dispositivos nucleares. A Índia expandiu a espiral de proliferação termonuclear até o sul da Ásia, com um teste em maio de 1998. O Paquistão não é conhecido por ter testado nada além de dispositivos de ‘fissão intensificada’, mas sua formidável capacidade nuclear não está em questão. (Um ensaio mais longo teria encontrado espaço, neste ponto, para reconhecer a contribuição desproporcional do paquistanês Abdul Qadeer Khan para a dinâmica global de proliferação.) Pode-se esperar que a cooperação nuclear saudita com o Paquistão acelere a difusão de armamentos nucleares até a península arábica, uma vez que o progresso iraniano na aplicação militar da tecnologia desencadeia a muito antecipada corrida armamentista Sunita-Xiita em armas de destruição em massa. Assim, a cadeia de proliferação se estende de forma constante em seu eixo principal, passando da rivalidade de superpotências da Guerra Fria, para a triangulação chinesa, uma bomba indiana de resposta e daí para dentro do mundo fraturado do Islã, por via do Paquistão (com as proezas nucleares não reciprocadas israelitas como incitação, e pretexto adicional.)

O caráter unidimensional desta narrativa é um artefato de sua imaturidade. O sub-desenvolvimento do processo de proliferação aparece, para a atual ‘comunidade internacional’, sem mais do que uma crise por vez. As coisas não vão ficar assim por muito tempo. Não há nada essencialmente mono-linear sobre a dinâmica de escalação cruzada. Aumentar o impulso já é tirá-la dos trilhos. Como Richard Fernandez observa, as linhas de escape nucleares estão ocorrendo em diversas direções de uma só vez:

Nas questões de segurança, a antiga matrix de ganhos do jogo Ocidente-Oriente foi substituída por um vetor multidimensional de novos jogadores, muitos deles subnacionais, alguns deles desconhecidos. O grande coringa é a tecnologia. Mudanças tecnológicas disruptivas e novos modos de guerra a elas associadas têm perturbado o antigo cálculo. Coréia do Norte e Irã não são ameaças extravagantes, mas indicadores importantes da dinâmica alterada. Eles são as primeiras amostras de uma nova ameaça entrando em andamento.

A Coréia do Norte alega ter testado armas nucleares em janeiro de 2016, seguindo testes de dispositivos de fissão em 2006, 2009 e 2013. Seja como questão de realismo analítico ou de ceticismo público com motivação estratégica, a alegação foi recebida com um menosprezo ocidental orquestrado. O teste de 2017 estilhaçou esse muro de negação. Nas palavras de Scott D. Sagan, escrevendo na Foreign Affairs: “A Coréia do Norte não apresenta mais um problema de não-proliferação; ela apresenta um problema de dissuasão nuclear”.

Embora, se traçada como uma curva simples e historicamente consistente, ainda não seja impossível ver um processo de desaceleração nessa linha do tempo, tal ótica está deixando de convencer. Parece ser parte de uma ordem mundial em colapso, que está levando sua estruturas de percepção abaixo consigo. A suposição de continuidade, por exemplo, agora parece imprudente ao extremo. A descontinuidade histórica na dinâmica de proliferação tem sido especialmente notável ao longo das décadas recentes, devido a um padrão em arraigamento cujos efeitos de incentivo não poderiam facilmente ser mais sinistros. A renúncia de ambições termonucleares tem adquirido uma forte correlação com a subsequente destruição do regime, ao contrário de qualquer coisa vista na era anterior de patronagem de superpotências na Guerra Fria.

A Ucrânia voluntariamente entregou seu arsenal nuclear para a Rússia na desintegração da União Soviética. Na era de Gorbachev, esta decisão sem dúvida parecia racional – e até mesmo prudente. Os desenvolvimentos subsequentes na região a tornam bem mais difícil de desculpar. Resta saber se a independência nacional ucraniana será finalmente sacrificada por essa elevada decisão, mas a segurança geopolítica e doméstica rudimentares já o foram.

A predominante histeria racial de nossa era nubla qualquer análise da mudança do regime sul-africano em termos comparáveis, como já nublou o próprio processo. Historiadores futuros terão olhos mais nítidos. Certamente, ela parece se encaixar no padrão. Não menos do que com o Juche, a experiência do apartheid é de que a sensibilidade à ‘opinião educada’ internacional é amplamente aumentada pela ausência de nukes.

A lição da Líbia foi a mais lúgubre até hoje. A desnuclearização da Líbia “foi pacificamente resolvida em dezembro de 2003, [explica a Wikipédia. Em um artigo separado, ela adiciona o apêndice (ainda mais útil) de que “Muammar Gaddafi, o líder deposto da Líbia, foi capturado e morto em 20 de outubro de 2011, durante a Batalha de Sirte. …vídeos de seus últimos instantes mostram combatentes rebeldes o espancando e um deles o sodomizando com uma baioneta, antes dele ser baleado diversas vezes enquanto gritava por sua vida”. Seria difícil elaborar um recurso educacional mais explícito contra a observância da não-proliferação internacional das ADMs.

Este é o pano de fundo contra o qual a obstinação nuclear norte-coreana deve ser avaliada. O regime já havia, em todo caso, tornado a desobediência uma especialidade local. Seu comportamento internacional delinquente há muito tem sido material de comédia negra. A imagem cultivada do país leva o espinhoso a territórios que a linhagem zoológica do porco-espinho ainda está por explorar.

No que diz respeito a fundamentos estratégicos, contudo, a atitude feroz de performance punk do regime em relação à conduta diplomática não é a questão principal. Uma má atitude cria um teatro diplomático estimulante, mas decora os fundamentos da ameaça. Foque em capacidades, não motivações, é um princípio estratégico que não pode ser superestimado. No caso da Coréia do Norte, e de outros que sem dúvida logo se seguirão, contudo, é um princípio que requer uma inversão completa. Uma incapacidade definida se eleva, ao invés, à proeminência estratégica.

A extremidade da ameaça norte-coreada emergente é uma função da fraqueza, em muitos aspectos, mas mais centralmente em relação às suas novas responsabilidades pela gestão de dissuasão. Arsenais nucleares inseguros são desestabilizantes, uma vez que se inclinam ao primeiro uso, sobre o princípio do use-ou-perca. A vulnerabilidade a um primeiro golpe é uma incitação contínua a prevenção.

A Coréia do Norte é uma nação geograficamente pequena, com estruturas cruas de comando e controle, capacidades muito limitadas de alerta antecipado e uma dependência exclusiva de plataformas terrestres expostas de mísseis balísticos para o disparo de ogivas. Em outras palavras, está destinada a permanecer a um fio de cabelo do momento em que cruza o limiar de dissuasão. Em vez de ser uma dor de cabeça insuportável para a ordem mundial por conta de sua iniciativa implacável e maligna, ela doravante será uma por simples padrão estratégico. O mundo terá se tornado uma cidade construída sob o Vesúvio, independente de basicamente quaisquer decisões de planejamento ou filosofias de risco. Uma época de perigo está se abrindo.

Sob estas condições, a mera ‘capacidade’ se torna extraordinariamente provocativa, e a incompetência é automaticamente aterrorizante. Ainda assim, embora este dilema não seja difícil de entender, ele talvez seja um pouco difícil demais para ser capturado por qualquer debate público conduzido em um nível realisticamente imaginável de sofisticação. Na medida em que existe algo como uma corte da opinião global de massa, pode-se confiantemente esperar que ela deixe passar os fundamentos estratégicos e se perca em performances teatrais multilaterais. Realidades geoestratégicas e percepções de massa estão em trajetórias divergentes.

As ilusões predominantes tendem a ser simplificadoras e retardadas (no sentido estrito). Elas atrasam a tendência difusiva e, assim, invocam estruturas de agência irrealisticamente econômicas, voltadas para o ideal de bipolaridade há muito perdido. A era de superpotências ainda domina a imaginação nuclear.

Uma vez que não há nenhuma rota passando por Pyongyang que não acabe em um buraco cheio de estacas diplomáticas, a tentação é fantasiar uma rota que passe por Pequim. Tal estrada não existe. As relações entre a China e o regime norte-coreano chegaram ao seu ponto mais baixo desde a Guerra da Coréia e agora são francamente hostis. O regime de Kim Jong-un buscou extirpar a influência chinesa de sua liderança, com espetacular crueldade. Ter os centros urbanos chineses como alvos do arsenal norte-coreano não é mais inimaginável, ou, na China, inimaginado. Afinal, o alvo natural de um dissuasor é a maior ameaça à soberania da nação que o usa. É quase-inevitável que a China venha a ocupar esse papel no caso norte-coreano. A impotência chinesa em relação à Coréia do Norte é grandemente – e talvez mesmo primariamente – o objetivo do arsenal norte-coreano.

Tyler Cowen [descreve o romance “The Moon Is A Harsh Mistress” (1966) de Robert Heinlein como “talvez o melhor romance para entender a lógica de um futuro conflito com a Coréia do Norte”. Ele, então, adiciona: “além disso, os Catalães deveriam lê-lo também. Acima de tudo, eu lembrei ao reler que este livro foi minha primeira exposição ao raciocínio da teoria dos jogos”. Não apenas bombardeios exóticos (por “catapultas eletrônicas”), luta por independência e jogos, mas também uma ordem mundial reconstruída pela ascensão da China e até mesmo uma “IA maliciosa” que adquire agência estratégica. Evidentemente, já há meio século, Heinlein estava explorando um aglomerado durável de preocupações. No cerne: Não pode haver uma questão de se alcançar ou manter independência sem a capacidade de infligir um sério dano àqueles que poderiam buscar impedi-la.

Independência, no seu sentido geopolítico, funde liberdade e segurança de maneira indissociável. A autonomia – que é, de maneira exata, soberania – exige insensibilidade à coerção e é, assim, o negativo de ameaças estrangeiras convincentes. A equivalência analítica entre independência recíproca e um ‘equilíbrio de terror’ submete a autonomia nacional a uma forma geopolítica de relatividade geral. Uma vez que nada como uma segurança absoluta é realista, a soberania existe apenas em graus, dentro de redes tensas. A tensão é o jogo.

A aplicação pioneira, por Thomas Schelling, da teoria dos jogos à estratégia nuclear continua sendo o ponto de ingresso neste mundo. O cerne da realidade dos jogos de destruição mútua assegurada (MAD) é facilmente incompreendido. Uma retaliação massiva (ou não reiterante) é, – no estágio em que se torna devida – por estimação imediata, irracional. Nesse momento, é tarde demais para contribuir qualquer coisa além de dano composto, independente de sua ocorrência. Sob condições hipotéticas de amnésia e ação irrestrita, ela nunca pode fazer sentido. Ainda assim, paradoxalmente, a capacidade de fazer ameaças retaliatória críveis é o fundamento básico da racionalidade durante os jogos de negociação anteriores. Sem ela, não pode haver nenhuma razão para a restrição do competidor. A exigência, então, é que um agente futuro esteja firmemente comprometido a um curso condicional de ação que – no potencial ponto de execução – não será convincente.

A destruição mútua assegura foi ridicularizada por sua loucura, mas não é menos um limite externo da sanidade. Sua lógica é tão rigorosamente implacável quanto qualquer uma encontrada dentro das ciências sociais e históricas. A perturbação moral extrema que ela desperta fala em favor de sua racionalidade intransigente. Uma intuição angustiada não conta de nada em seu cálculo frio, a não ser como um obstáculo técnico. O fato de que as pessoas acham essa lógica de comprometimentos fatais herdados intolerável, como dramatizado com excepcional vividez na sequência de abertura da filme War Games de 1983, é nosso problema. O processo é re-roteado por nossos melindres, mas de forma alguma descarrilado. Há muito se suspeita que os humanos são fracos demais para a MAD.

Enquanto expressão de comprometimento absoluto, o terrorismo suicida parece fornecer um modelo microscópico à MAD, mas ele é fraco e enganador. Para além da diferença em escala, o terrorismo suicida falha através da execução. Ele comunica através da realização – ou demonstração de vontade – o que é o negativo da dissuasão. (Ou talvez, da dissuasão de um tipo, comprada a um preço alto.) O terror à beira do presente, e do futuro, tem modelos diferentes. Entre esses, o ‘suicídio quântico’ de escala civilizacional é talvez a concepção filosófica e ideológica mais exótica em nosso caminho. Dada a suposição de um multiverso (de Nível-3 ou superior), um apocalipse abrangente é racionalizado como a poda de ramos sub-ótimos. Opera como uma edição da realidade. As consequências na teoria dos jogos de tal perspectiva são intrigantes. Ela aumenta a credibilidade das ameaças (se aceita como um comprometimento intelectual sério), ao passo em que adapta a matriz de ganhos de uma maneira que só pode ser considerada desestabilizadora. A MAD clássica funciona melhor entre aqueles que vislumbram um resultado como a pior coisa do mundo, e ainda assim se comprometem com ele da mesma forma.

Aproximamo-nos aqui de um dos mais profundos problemas da engenharia social e institucional. Poderia ser chamado de Problema de Odisseu. Ao navegar pelas sereias, Odisseu antecipou a subversão do comprometimento e, assim, implementou um mecanismo sócio-técnico para atar sua própria ação futura. A estrutura é aquela de um ‘jogo de galinha’ – uma variação mutante do dilema do prisioneiro, na qual o jogador que desvia perde. Se você conseguisse recuar, você poderia. Tanto no dilema de Odisseu quanto naquele do jogador de galinha, a eliminação da discrição futura aparece como um recurso estratégico. A exigência de auto-atação se inclina a um congelamento tecnológico da decisão. Problemas estratégicos do tipo do ‘jogo de galinha’, assim, tendem inexoravelmente à automação.

Se a IA for posta em jogo pelas dinâmicas intrínsecas ao confronto nuclear, não para por aí. A IA tem uma potencialidade de ADM própria de si. Não há nenhum horizonte óbvio do que um algoritmo poderia fazer. As mesmas capacidades que permitem o controle algorítmico de arsenais de ADMs igualmente permitem que tais arsenais sejam substituídos pela própria IA. Um arsenal inimigo sob controle algorítmico só é ‘deles’ por contingências de dominância de software. Da perspectiva militar – entre outras orientadas à capacidade negativa – a destrutividade potencial da tecnologia não tem limite determinado. Qualquer coisa sob controle de software cai nesse âmbito. O que seria dizer, assintoticamente, tudo. Mas não acaba aí. A IA também promove um avanço à virtualidade.

Armamentos nucleares cortam um caminho convergente até a pureza da concepção. Nenhuma bomba de hidrogênio foi usada contra um inimigo ainda (ou “com raiva”, como a expressão singularmente inapropriada diz). Ogivas termonucleares permanecem entre uma seleta categoria de armas virtuais, ao lado de uma variedade de agentes químicos e biológicos, cujo uso tem sido exclusivamente diplomático, ou mesmo filosófico. O valor deste maquinário militar é estritamente contra-factual. Aqueles ‘mundos possíveis’ nos quais eles foram operacionalizados sustentam pouco, se qualquer, valor. Armamentos que sustentam sua potencialidade levantam a opção ontológica da utilidade negativa extrema. Eles são – no sentido mais rigoroso – geradores de pesadelos.

Não existe qualquer razão (que seja), então, para pensar que as armas nucleares são a última palavra em destruição em massa. Tampouco pode se assumir que a destruição em massa é o critério último para armamentos de dissuasão. Não é apenas que a física de alta-energia abre um vasto e errante bestiário de catástrofes virtuais que mal começamos a examinar (embora isto seja verdade). A física não tem nenhum monopólio sobre desastres, independente do que seus privilégios recentes possam sugerir.

Não pode nunca ser uma virtude que uma arma seja indiscriminada, ou seja, imprecisa. Virando ao avesso, podemos dizer sem hesitação ou reserva que é louvável em qualquer arma, não importa o quão absolutamente devastadora, que a maior proporção possível do dano que ela produz seja infligido sobre o inimigo. Em outras palavras, uma boa arma discrimina especificamente contra os interesses inimigos. Ela caça. Não pode haver qualquer dúvida séria de que as biociências genômicas e a engenharia de software têm mais a contribuir para essa busca do que a física jamais poderia.

Stuart Russell descreve armas autônomas como uma “classe nova e escalável de ADMs”. Os sistemas que ele está considerando seriam exemplificados por enxames de drones, “caçando em matilhas como lobos” (como um empregado da DARPA foi indiscreto o suficiente para revelar). Dados enormes ciclos de produção industrial, especificações de desempenho desprendidas da limitação humana e algoritmos de mira definidos para letalidade indiscriminada, o potencial devastador de tais armas seria difícil de exagerar. Suas vulnerabilidades chave, confiantemente previstas, contudo, são pelo menos igualmente significantes.

Como Russell enfatiza, armas autônomas poderiam ser subvertidas por uma “atualização de software” hostil. Elas poderiam ser hackeadas. Por trás da ameaça do hacker está aquela de uma inteligência artificial avançada, reunindo poderes superiores de arrombamento criptográfico e intrusão suave. Armamentos autônomos estão, portanto, aninhados em uma ameaça mais profunda.

A IA designa uma culminação, por assim dizer. Em nenhum outro lugar, capacidade destrutiva e comprometimento rígido prometem se interseccionar mais dinamicamente. Nada separa a arma do jogo. Também conta, potencialmente, como uma escalada.

Muito da crítica à corrida armamentista da Guerra Fria  a configurava como um risco existencial, antes do termo ter sido cunhado. Entre um X-risco e um dissuasor extremo, não há nenhuma fronteira definida. A diferença é técnica. Dissuasão é um modo de emprego. Ela usa utilidade negativa. Neste aspecto, qualquer coisa ruim poderia ser útil, não fosse que um dissuasor exige um gatilho, sob o controle do agente negociador (no ponto de negociação). Ameaçar um potencial agressor com um ataque de asteroides não faz nenhum sentido, a menos que um ataque de asteroides possa ser realizado. O mesmo vale para desastres geológicos em geral. Tudo isso significa que a aquisição de capacidades de engenharia nas maiores escalas, tais como geo-engenharia, controle e regulação climática e defesa por asteroides – talvez desenvolvidos explicitamente para evitar riscos existenciais – inevitavelmente expandirão o domínio das opções de dissuasão. Em outras palavras, o progresso tecno-econômico e a escalada da infraestrutura de dissuasão estão apenas formalmente diferenciados. Não há nenhuma maneira materialmente persuasiva de se melhorar o mundo que não amplie – em seu lado oculto – os horizontes de horror geopolítico.

Além do que se poderia ter, há a questão de quem tem. Além das qualidades dos antagonistas armados com ADMs, seu mero número é uma fonte de terror, em si. É apenas natural que se ache a dissuasão multilateral mais ameaçadora do que seu ideal bilateral e agora predecessor distante. A complexidade se escala de maneira não linear em redes e rapidamente se torna matematicamente intratável. Ninguém têm qualquer ideia de como redes de insegurança massivamente distribuídas funcionariam. Bastante provavelmente é impossível saber. A dissuasão está prestes a mudar de fase.

A pasta de dentes não volta para o tubo só porque faz uma bagunça. Uma vez que esteja fora, o inconveniente deixou de ser qualquer tipo de argumento contra ela. Os perigos de um mundo no qual a capacidade ubíqua de dissuasão reina são tanto óbvios quanto imensos. Este é, não obstante, o mundo em que estamos entrando. As tendências que o guiam, tanto do lado geopolítico quanto do tecno-econômico, são, por qualquer estimativa realista, irresistíveis. Armamentos de pesadelos mais baratos e mais diversos estão ficando disponíveis dentro de uma ordem internacional cada vez mais desintegrada. Uma variedade de dinâmicas auto-reforçadoras – incluindo, mas não limitadas àquelas do tipo de corridas armamentistas – estimulam ainda mais o processo. Uma aceleração em cascata é basicamente inevitável.

Quando concebida com o máximo de cinismo (ou seja, realismo), a independência geoestratégica é uma função direta da capacidade de dissuasão. Não pise em mim é a afirmação coloquial, cuja aplicabilidade perfeita normalmente é subestimada. A cascavel, que combina um armamento terrível com sinalização, constitui um totem natural da dissuasão. Nem o veneno, nem o chocalho são dispensáveis. “Diplomacia sem armas é como música sem instrumentos”, diz a famosa analogia, atribuída a Frederico, O Grande. A teoria dos jogos reconhece a capacidade militar como um meio de comunicação.

Não é apenas que a independência robusta depende da dissuasão. De maneira recíproca, a liberdade geoestratégica necessariamente tende à produção de capacidade de dissuasão. Uma liberdade alienígena, que consiga fazer qualquer coisa, é – ineliminavelmente – uma ameaça. Ela fornece o modelo abrangente da ameaça militar. Se ‘eles nos odeiam por nossa liberdade’ ou não, eles não têm qualquer escolha além de nos temer por ela, e inversamente. A geopolítica não tem qualquer outra origem. Qualquer estado sem a vontade de assustar também carece da vontade de existir.

É tudo bem mais básico do que fomos levados a crer. Como Niall Ferguson escreve (de maneira realista):

Na análise final, fronteiras são uma função do poder. Se você não consegue defendê-las, elas são apenas linhas pontilhadas. O cálculo da dinastia Kim foi de que os nukes são os derradeiros guardas da fronteiras. Logo descobriremos se esse cálculo estava correto. Se estiver, muito mais estados irão querê-los.

Toda entidade geopolítica que seja séria sobre a soberania vai querê-los, ou algo de credibilidade dissuasora pelo menos equivalente. A única alternativa é a pura dependência, tornada cada vez mais desconfortável pela crescente multipolaridade global, entre os resolutos destroços de qualquer ‘ordem mundial’ ou ‘comunidade internacional’ fundamentada na fantasia coletiva de normas supranacionais milagrosamente autorizadas. Proliferação explosiva será algo que o mundo não viu antes, mesmo que já tenha estado lá para ver. Podemos estar confiantes de que a ordem geopolítica será reconfigurada por ela.

O que significa proliferação explosiva? Potencialmente, muitas coisas. Por exemplo, vetores de desenvolvimento tecnológico – e, assim, econômico – por certo serão, em algum grau significativo, orientados por ela. Conforme a inteligência artificial seja fatorada na tomada de decisões sobre políticas, não apenas como um colaborador para o comando, controle, comunicações e inteligência (C³I), mas como uma intrínseca arma de destruição em massa, sua proeminência será ainda mais elevada.

A proliferação de ADMs implica em uma multiplicação das agências geopolíticas reais. É rigorosamente indistinguível – em ambas as direções – de um mundo desintegrado. Relações estabelecidas de dependência são quebradas, liberando liberdades não antecipadas – e evidentemente perigosas. Quer este seja o mundo que queremos ou não, parece cada vez mais inevitável que este é o mundo que devemos ter.

Original.

Psicose Política

Os liberais clássicos estão ficando de fora do fim do mundo. Ficando de fora, na maior parte, da maneira em que Norma Bates ficou de fora da exploração que seu filho fez da diversidade psicológica. Norman saberia por que ela não está se movendo, se apenas ele conseguisse se lembrar.

Antes mesmo de começarmos, estamos fundo no problema da identidade e, na verdade, de várias. ‘Liberalismo’ é a palavra mais profundamente corrompida da história política. Sem qualquer exagero, licença retórica ou latitude metafórica, é o rosto coriáceo fatiado de algo há muito assassinado que agora serve para disfarçar um maníaco espumante com uma motosserra, que não compartilha nada de seu DNA. Esse uso psicopata precisa cair por terra antes mesmo de chegarmos a Bates. Liberalismo, deste ponto em diante, não chega nem perto de significar algo como um progressismo feliz com o estado. Ele é definido, em vez disso, como o pólo oposto do socialismo. Seu único valor dominante é a liberdade. Ele é individualista, sempre apenas cautelosamente tradicionalista, orientado pelo comércio e pela indústria, estrategicamente negligente em cuidado, cético em relação a todas as supostas agências públicas e rigorosamente econômico em relação a todas as dimensões do governo. Ele teve um século XX realmente terrível e agora as coisas não parecem nem um pouco melhores.

Em nenhum momento na história recente as preocupações liberais foram menos relevantes para a política pública – mesmo que seja como chapéu de papel-alumínio ou bicho-papão ‘neoliberal’. Poderia ser necessário retornar à década de 1930 para encontrar uma época de comparável eclipse. Eles não estão sendo ouvidos e certamente não são o objeto de qualquer conversa animada, a não ser para aparecer em zombarias nas mídias sociais como o alvo de piadas. Suas preocupações parecem excêntricas e até mesmo identificavelmente datadas de algum ponto entre o fim dos anos 1970 e o lamaçal do Bush Bebê. Onde a direita já nutriu uma ambivalência secreta por Pinochet, por admiração pelos Chicago Boys, hoje ela só está interessada nos helicópteros.

Não é – em sua maior parte – a confusão de gênero e geracional entre as sub-personalidades de Norma e Norman que torna os libertários tão Batesianos. É o terceiro alter ego, que desaparece no filme, mas não no romance. Norman intermitentemente se confunde com Normal. Normal é o que pensa que ele é como todas as outras pessoas. O liberalismo faz exatamente a mesma coisa. Ele fica louco pensando sobre si mesmo como normal, quando na verdade é WEIRD.

O universalismo liberal envelheceu mal nos anos recentes. Mais especificamente, ele envelheceu mal em duas direções diferentes. À esquerda, o liberalismo foi consumido pelo universalismo, se tornando um monstro globalista que ridiculariza a liberdade, ao passo em que à direita ele foi completamente desmoralizado, conforme despontava o reconhecimento sobre o que o universalismo realmente significa. Para qualquer um que ainda estremeça com algum ligeiro espasmo residual da morte do impulso liberal, a discussão rapidamente fica quase insuportável neste ponto. Isolamento, despedaçamento psíquico e outras manifestações de loucura traumatizada se seguem.

Tudo sobre o que a Eleição Presidencial dos EUA em 2016 tratou é pertinente. O politicamente correto e a Janela de Overton em geral, raça, imigração, gênero e normas sociais em particular, todas as partes apanharam um aspecto da agonia liberal. Donald Trump era, no sentido estrito – e não apenas no depravado – um candidato drasticamente iliberal. Em sua campanha, uma humilhação pública do universalismo quase equivalia a uma plataforma. A política americana havia se tornado abertamente tribal.

Aquela garota americana dos sonhos com que você falava durante o jantar? A que poderia ter sido o futuro? Ela sangrou até morrer por causa de múltiplos ferimentos de facadas durante o banho. Você a matou, Norman. Sim, você. É difícil acreditar, obviamente, mas vamos explicar como.

Para começar com a dimensão mais aquecida da política identitária, o liberalismo tem um problema de raça. Os liberais tendem a gostar muito de imigrantes, ao passo em que os imigrantes não gostam quase nada dos liberais. Alguma evidência quantitativa para isto é fornecida por Hal Pashler, em um artigo (de 2013) sobre U. S. Immigrants’ Attitudes Toward Libertarian Values (“Atitudes dos Imigrantes dos EUA em Relação aos Valores Libertários”), que descobre:

… um notável padrão de apoio inferior a visões pró-liberdade entre os imigrantes, quando comparados com os residentes nascidos nos EUA. Estas diferenças foram, em geral, estatisticamente significativas e consideráveis, com algumas exceções dispersas. Com proporções cada vez maiores da população dos EUA sendo estrangeiras, um baixo apoio a valores libertários por parte de residentes estrangeiros significa que os prospectos políticos dos valores libertários nos EUA provavelmente diminuirão ao longo do tempo.

De acordo com uma ampla gama de métricas, os residentes estrangeiros expressaram um apoio significantemente menor por um governo limitado do que a população nativa. Tais efeitos quase certamente seriam ainda mais fortalecidos se a última categoria em si tivesse sido decomposta em etnias. Quando se ofereceu aos americanos uma escolha binária entre um governo menor ou maior, uma expansão do governo foi favorecida por apenas 27% dos brancos, mas por 55% dos asiáticos, 64% dos negros e 73% dos hispânicos. Categorias étnicas mais precisas apenas aguçam o padrão. A Linha de Hajnal, que divide os mais comprometidos exógamos (do noroeste) da Europa de seus vizinhos mais tribalistas, resume um gradiente de individualismo, entre outros traços liberais distintos. A etnografia de Emmanuel Todd dos tipos de família e suas tendências ideológicas associadas liga o liberalismo à ‘Família Nuclear Absoluta’ (do noroeste europeu). As tradições da lei comum são peculiares dos Anglo-Saxões. Weber e Sombart identificam etnicamente as disposições capitalistas com os protestantes e os judeus (modernos). Começa a parecer extremamente improvável que os liberais representem uma amostra aleatória dos povos do mundo.

O viés liberal de gênero dificilmente é menos impressionante.

O Sufrágio das Mulheres Mudou o Tamanho e o Escopo do Governo? perguntam John Lott e Lawrence Kenny. Certamente parece que sim:

Descobrimos que o governo continuou a crescer conforme a participação eleitoral feminina aumentou ao longo do tempo. Uma vez que o sufrágio foi concedido às mulheres em diferentes estados ao longo de um período grande de tempo, que se estendeu de 1869 a 1920, é improvável que a Primeira Guerra Mundial seja a chave. Esses dados também nos permitem abordar questões de causalidade de maneiras incomuns. A questão central é se dar às mulheres o direito de votar fez com que o governo crescesse, ou se houve alguma outra coisa que contribuiu tanto para as mulheres conseguirem o direito de voto quanto também para o aumento no crescimento do governo. Encontramos efeitos muito similares do sufrágio das mulheres em estados que votaram pelo sufrágio e estados que foram forçados a dar às mulheres o direito de voto, o que sugere que o segundo efeito é pequeno.

A era do grande governo e a da emancipação feminina não parecem ser facilmente distinguíveis. Nas palavras incautas de Peter Thiel:

Desde 1920, o vasto aumento dos beneficiários do estado de bem-estar social e a extensão do direito ao voto às mulheres – dois eleitorados que são notoriamente difíceis para os libertários – tornaram a noção de “democracia capitalista” um oximoro.

A conclusão horrivelmente convincente, mas totalmente iliberal, parece ser de que as mulheres e os não brancos usaram de sua crescente influência política para expandir massivamente o escopo do governo. À qual um terceiro fatos pode ser adicionado, que é o casamento. De maneira bastante simples, solteiros são maníacos comunistas, comparativamente falando. Em relação a política partidária dos EUA, Steve Sailer o chama de ‘lacuna do casamento’. Não é pequena. Na Eleição Presidencial de 2012, as mulheres casadas (em geral) ficaram com Romney em vez de Obama por cerca 55%, mulheres casadas brancas por cerca de 63% e homens brancos casados por cerca de 67%. (A quota de Romney entre as mulheres negras solteiras foi 2%.)

Conforme as medidas demográficas, políticas e sociais liberais foram arraigadas, os liberais clássicos, conduzindo o curso da evolução social moderna a partir de uma posição modestamente à esquerda do antigo establishment monárquico e eclesiástico, eventualmente se tornaram libertários, lutando de maneira ineficaz contra a imersão em tirania socialista, na posição de uma direita exterior encalhada, alienada e ridicularizada. Durante todo esse processo, o liberalismo consistiu – quase sem exceção – de homens brancos. Reconhecidamente, esses tipicamente eram homens brancos em negação. Através de toda a amplidão da história mundial, nunca houve um grupo populacional mais negligente de seus próprios privilégios. E assim eles se destruíram.

Qualquer um que tenha chegado ao estágio “Ó, meu Deus, os estereótipos” com isso está indo a algum lugar. Essa tem sido a parte central do processo de aprendizagem. Todos os estereótipos são verdadeiros (basicamente). Essa é a ciência, também, se ajudar, embora raramente ajude. Exceto quando inflados ou dogmatizados para além do extensão da utilidade enquanto heurística epistemológica geral, os estereótipos tem uma confiabilidade vastamente maior do que – por exemplo – comprometimentos cognitivos ideologicamente motivados. Mais, os liberais clássicos costumavam saber disso. É uma expectativa burkeana.

Estereótipos são produtos sociais espontâneos, como as línguas naturais, a lei comum e o dinheiro metálico. Dizer tudo isto explica por quê os liberais clássicos são conservadores, caracterizados por uma aceitação por princípio da maneira em que as coisas aconteceram. O que havia sido, historicamente, uma visão razoavelmente otimista do governo estatal centralizado foi baseada em quão pouco dele jamais houvera antes. A mera existência do gigantesco estado de bem-estar social democrático torna esse liberalismo conservador (ou conservadorismo liberal) impossível. Um libertarianismo revolucionário radicalmente frustrado toma o seu lugar.

É fácil ver o que faz Bates passar dos limites. Ele pensara que era Normal, mas acontece que ele é um WASP. Através de mais uma reviravolta louca, ele reconhece que a única coisa que os WASPs nunca farão é defender sua própria cultura – essa é um tradição étnica essencial. O libertarianismo tem sido loucamente WASPico nesse sentido, quando ele o observa, o que não consegue fazer por muito tempo. É um paradoxo intratável que conduz, por entre a incoerência, até a fragmentação. Ter protegido sua identidade teria sido algo que apenas um outro poderia ter feito. Talvez sua mãe cuidasse dele? Mas ela está morta.

A identificação do liberalismo clássico com a cultura WASP é uma aproximação forte. Poucas correlações sócio-históricas são mais robustas, mas a coincidência só pode ser estatística. Existem WASPs socialistas e liberais clássicos não-WASPs, embora não o bastante de nenhum deles para perturbar seriamente o padrão. Quando os franceses, em particular, se referem aos anglo-saxões de maneira estereotípica, eles sabem do que estão falando e também o sabe qualquer outra pessoa que esteja prestando atenção. Hubert Védrine coloca da melhor maneira:

[V]amos admitir: A globalização não beneficia automaticamente a França. […] A globalização se desenvolve de acordo com princípios que não correspondem nem à tradição francesa, nem à cultura francesa. Estes princípios incluem a economia de mercado ultraliberal, a desconfiança do estado, o individualismo removido da tradição republicana, o inevitável reforço do papel universal e ‘indispensável’ dos Estados Unidos, o direito comum, a língua inglesa, as normas anglo-saxãs e conceitos protestantes – mais do que católicos.

Tudo faz sentido visto de fora, mas para a própria cultura WASP – o que seria dizer, para o liberalismo – a política identitária é loucura. Isso a deixa sem ter aonde ir. A face de couro esquizo-maoista da esquerda anglófona contemporânea não é nenhum tipo de opção plausível, mas tampouco o é qualquer coisa que se abra na direita popular. Conforme a Alt-Right consolida seu caso passional com a identidade, ela soa cada vez mais como Hubert Védrine. O individualismo é ridicularizado. Sua desconfiança do livre comércio deve mais a Friedrich List do que ao Iluminismo Escocês. Sua crítica da arbitragem trabalhista frequentemente é quase indistinguível daquela familiar das tradições socialistas, marcada pela mesma corrente de ultraje moral com o fato de que o Capital – apesar de ser ele mesmo competitivamente disciplinado por consumidores descomprometidos – tem permissão para pesquisar os melhores preços dos seus recursos humanos. A concorrência de salários, mesmo a concorrência de preços de maneira mais geral, é um objeto cada vez mais comum de ataque. Em seu extremo dinâmico e racial, a Alt-Right promove a solidariedade entre Brancos, ou Europeus, como se qualquer um deles jamais pudesse ser uma coisa WASP. A Europa é do que o liberalismo sempre buscou escapar. O populismo exige uma política de agravos, o que significa uma antipatia padrão às minorias dominantes do mercado e, assim, – no contexto ocidental – uma inclinação irreprimível ao anti-semitismo. Nada disso descreve um lugar ao qual mesmo liberais enlouquecidos possam ir.

Uma vez que a palavra ‘fascismo’ foi tão arruinada pelo uso polêmico incontinente, é difícil empregar sem um sobre-alcance retórico aparente. Isto é infeliz, por em seu sentido frio e técnico, a palavra não é nem sequer meramente conveniente, mas mesmo inestimável. Ela literalmente significa a política do agrupamento. Fasces são bastões unidos. Os liberais são essencialmente definidos pela sua dissidência disso. Se a cultura WASP tem um núcleo, ele é a associação frouxa. Não existe nenhuma possibilidade real de simplesmente reuni-la novamente. Piratas e cowboys não fazem solidariedade nacional. Isso seria uma cultura completamente diferente.

Quanto a Bates, por agora ele já sabe que sua mãe está morta e até mesmo que ele a matou – que ele mata qualquer pessoa parecida com ela. Inundam-se pensamentos ruins. É difícil continuar, mas pelo menos ele tem confiança em seu próprio princípio de não agressão. Não tem jeito de que poderia ter sido como eles dizem, porque ele não machucaria ninguém. Nem mesmo uma mosca.

Original.

‘A Única Coisa que Eu Imporia É a Fragmentação’ – Uma Entrevista com Nick Land

por Marko Bauer e Andrej Tomazin

Em seu livro de 2014 Templexity: Disordered Loops through Shanghai Time você escreve: ‘”O que aconteceu com a América?” é a questão cyberpunk por excelência’. O que realmente aconteceu com a América nos últimos meses?

É meio roubado do William Gibson, então remonta até o meio dos anos 1980. Eu acho que você está totalmente certo de dizer que agora é uma excelente hora para se retornar a ela. Então, o que aconteceu com a América? Se eu fosse dizer em poucas palavras: depois de aproximadamente meio milênio, durante o qual a principal força motriz da história global foi alcançar a integração de estados maiores e mais poderosos, dirigidos por um grupo de ideólogos fortemente universalistas, que basicamente pensam que quanto maior sua agregação e quanto maior o conjunto de regras comuns que pode ser imposto sobre ela, melhor, estamos vendo uma reversão da maré de um escopo verdadeiramente histórico. A tendência básica agora é desintegradora. Então, o que eu vejo acontecendo com a América: se manter unida vai se tornar cada vez mais desafiador.

Sentimos muito, com antecedência, por fazer referência a teóricos franceses, que são, claro, parte de sua formação, mas aos quais parece que você está cada vez mais alérgico.

Isso não exige nenhum pedido de desculpas.

Uma das tendências mais valiosas de sua escrita é/era a desterritorialização da divisão progressista/reacionário. Isto parece especialmente perdido em seu blog Xenosystems, onde você se posiciona à Direita, independente de quão distante no extremo dela isso seja. Isso não é um tipo de reterritorialização?

Eu acho que estamos devendo – sempre – uma grande discussão sobre o que as pessoas querem dizer com Esquerda e Direita. A polaridade Esquerda/Direita é uma peça muito interessante de linguagem, um pequeno e compacto sistema de linguagem, porque todo mundo está usando ele ou com uma imensa falta de clareza sobre o que está realmente sendo invocado com isso, ou com associações básicas em grande parte inconsistentes com esses termos.

A Esquerda para você agora é o lado conservador, e a Direita o progressista. Mas onde reside a distinção Esquerda/Direita, na realidade? A Esquerda significa – como Badiou e cia. alegariam – igualitarismo, e a Direita é contra isso? A Esquerda é a Regra de Ouro e a Direita a regra de algo na linha de ‘faça o que lhe aprouver, mas aceite as consequências’?

Bem, esse é o sentido crowleyita da Direita. Badiou é uma pessoa interessante para se introduzir, porque eu estou bem feliz com a sua distinção Esquerda/Direita. Em um sentido que agora está predominantemente em jogo, a Esquerda é o campo da unidade e do universalismo, e o igualitarismo é uma grande parte disso. A Direita é o campo da fragmentação, da experimentação e, eu diria, da competição, enquanto termo que foi herdado de uma tradição e é provavelmente bastante incontroverso. Mas, sim, as pessoas de fato se apegam a um sentido de Direita e, sem dúvida, também de Esquerda que é exatamente sobre hiperterritorialização. Há um sentido “Sangue e Solo” da essência da Direita, com o qual eu me sinto compelido a me engajar, e a tentar deslocar e destronar, porque eu não acho que ele leva a qualquer lugar. É um beco sem saída. Poderia haver algumas oportunidades táticas nessas tendências, mas o ‘Neo’ em NRx implica precisamente que não há volta. Na medida em que o identitarismo do “Sangue e Solo” conseguir alcançar o poder de várias maneiras, ele verá seus piores dias, será forçado a entregar e ter um desempenho, e falhará em fazê-lo. Quanto mais eles realmente estiverem em uma posição de implementar políticas, mais eles se tornarão ineficazes em seus próprios termos. Eles perderão o potencial de globalização em massa e serão associados a falhas. Eu gostaria de ver esses experimentos acontecerem em uma escala pequena o suficiente para que possam ser educativos, em vez de globalmente catastróficos.

Você está interessado em falhas locais?

Sim, falhas locais são ótimas. Falhas globais, obviamente, não tão boas.

Todas as analogias com os anos 30 são meio letárgicas ou nostálgicas, como se não houvesse nada novo ocorrendo. Não obstante, há também a paixão de Badiou pelo Real e o fenômeno de ‘comunistas’ virando ‘fascistas’ durante o período entre as duas guerras mundiais – figuras tais como Pierre Drieu la Rochelle ou Charles Péguy, que talvez seja ainda mais ambivalente, uma vez que ele se torna um vetor de referência tanto para a França de Vichy quanto para Mussolini, mas também para o movimento de resistência. Estamos cientes do seu ponto de vista diferente sobre o que o fascismo é, que não vê qualquer transformação nos casos acima, e da perspectiva do qual a mudança de Goebbels do socialismo para o nacional-socialismo é um mero passeio. Estamos, contudo, interessados na sua mudança para o outro lado – exterior. Qual poderia ser uma relação entre a paixão pelo Real e a paixão pelo Exterior? O seu Exterior é similar ao Real de Badiou?

Poderia ser. Eu diria, no entanto, que sem uma noção de teste de realidade, uma invocação do Real é de significância absolutamente zero. Qualquer um pode invocar o Real, mas, a menos que exista algum mecanismo que forneça, não uma voz para o Exterior, mas uma intervenção funcional real vinda do Exterior, de modo que tenha uma função seletiva, então a linguagem é vazia. Nesse sentido, ele é completamente inseparável da fragmentação. Os sistemas modernistas funcionam – quer você esteja falando sobre a economia de mercado ou das ciências naturais – porque são sistemas fragmentários. Não existe nenhuma decisão política sobre o que é ou não é um bom resultado científico ou econômico. Esses resultados estão sujeitos a um processo seletivo de triagem que mobiliza o Exterior. É aqui, sem ser um grande ou mesmo um medíocre acadêmico de Badiou, que minha suspeita natural sobre uma invocação do Exterior vinda da posição que ele parece ocupar estaria.

Uma questão metafísica boba: O Exterior é algo dado/fixo ou é uma entidade mutável?

É uma questão importante, mas não perfeitamente formulada. A tendência da filosofia transcendental tem sido cada vez mais identificar o Real com o Tempo. O Real e a Temporalidade estão profundamente co-envolvidos de tal maneira que o Tempo não pode ser usado como um quadro no qual colocar ou fazer sentido do Real. Simplesmente não podemos fazer a pergunta de se o Real é mutável ou imutável. Se dizemos que o Real é ou mutável ou imutável, estamos dizendo que ele existe no Tempo e, se este é o caso, então deveríamos estar perguntando sobre o Tempo, e não sobre o que pensávamos estar perguntando, quando estávamos perguntando sobre o Real. Porque é o Real que é o fator controlador derradeiro. Pensar que podemos colocá-Lo no Tempo é uma distração para longe deste nível transcendental derradeiro da questão. Isso é intrinsecamente obscuro, mas eu acho que também é inescapável.

Como o teste de realidade funciona?

Fazemos isso permitindo que um processo de seleção aconteça. As ciências naturais são um exemplo tão bom disso quanto qualquer outro. A única coisa que fez com as ciências modernas se elevassem para além dos procedimentos epistêmicos vistos em outros tempos e outras culturas é o fato de que há um mecanismo além da manipulação política humana para a eliminação de teorias defeituosas. Karl Popper está, nesse nível, totalmente correto. Se é politicamente negociável, é inútil, não é científico, por definição. Você não confia nos cientistas, você não confia nas teorias científicas, você não confia nas instituições científicas na medida em que elas têm integridade, você confia é na zona desintegrada de crítica e nos critérios para a crítica e para a avaliação em termos de experimentos repetidos, em termos das heurísticas que são construídas para decidir se uma teoria em particular foi derrotada e eliminada por uma teoria superior. É esse mecanismo de seleção que é a única coisa que torna a ciência importante e a torna um sistema de teste de realidade. E isto está, obviamente, intrinsecamente direcionado contra qualquer tipo de comunidade política orgânica que vise determinar internalmente – através de seus próprios processos – a negociação da natureza da realidade. A realidade tem que ser um fator crítico disruptivo externo.

O texto Lemurian Time War do CCRU diz que a hiperstição está ‘traçando uma fuga do destino’. Como esta noção entre em jogo com o teste de realidade?/

Eu acho que hiperstição é uma daquelas coisas que escapou completamente da caixa e agora é um animal selvagem e feroz à solta. Minha relação com essa coisa alienígena é como a de todas as outras pessoas que estão interessadas nela. Estou abordando-a de uma posição de zero autoridade, tentando fazer sentido de como ela está vivendo e mudando e afetando o mundo. Ela, a coisa, não ele, o conceito. Mas tendo dito isso, meu sentido de uma hiperstição é que uma hiperstição é um experimento. Ela torna a si mesma real, se funcionar. E ela funcionar ou não é algo que não pode ser, novamente, decidido por um processo de debate interno, você não pode, como resultado de algum tipo de dialética interna decidir que, ei, esta é uma boa hiperstição, ela tem um grande futuro. Ela vai funcionar por causa de sua relação intrínseca com o Exterior, que é algo que não pode ser gerido. Talvez ela possa ser cautelosa e tentativamente prevista, da maneira em que um cientista ou um artista – ao aprender seu ofício – conseguiria ter um sentimento do que vai funcionar e do que não vai funcionar. Mas isso não é o mesmo que ter um critério, ainda menos uma lei.

Retornemos à nossa primeira questão sobre a América, neste momento bastante histórico, que está entrelaçado com padrões semióticos e regularidades intensivas que parecem ser tweetadas e espalhadas em um certo discurso pós-factual, para dentro de uma imagem do real, que não se pode mais distinguir retroativamente do real. A fabricação de notícias falsas em Veles, Macedônia, durante as eleições dos EUA, é uma maneira de ‘propagar rotas de escape’, na sua visão, ou é um evento efêmero sem qualquer significância?

Eu definitivamente acharia que algum tipo de resposta desdenhosa ao longo da segunda linha seria grosseiramente complacente. É uma rota de escape? Há, definitivamente, uma relação com uma escapada. Todo esse fenômeno de notícias falsas é enormemente importante e historicamente significativo. No momento, eu estou completamente cativado pela força de uma analogia entre a era de Gutenberg e a era da internet, essa força rítmica vinda da conexão entre elas. Uma destruição radical da realidade se passou com a emergência da imprensa. Na Europa, este processo auto-propulsor começou, e o sistema de consenso de descrição da realidade, atribuição de autoridades e critérios para qualquer tipo de afirmação filosófica ou ontológica foi todo jogado no caos. Processos massivos de desordem se seguiram, os quais eventualmente foram resolvidos nessa nova estrutura, que teve que reconhecer um grau maior de pluralismo do que havia existido previamente. Eu acho que estamos no mesmo tipo de estágio inicial de um processo de caos ontológico que estilhaça o absoluto, que veio do fato de que as autoridades epistemológicas foram explodidas pela internet. Seja o sistema universitário, a mídia, as autoridades financeiras, a indústria editorial, todos os guardiões básicos e as agências e sistemas de credenciamento que mantinham as hierarquias epistemológicas do mundo moderno estão simplesmente caindo aos pedaços em uma velocidade que ninguém imaginava ser possível. E as consequências no curto prazo, no futuro próximo, estão fadadas a serem confusas e imprevisíveis e talvez inevitavelmente horríveis de diversas maneiras. É um fenômeno de limiar. A noção de que há um retorno ao regime anterior de estabilização ontológica parece absolutamente iludida. Há uma escapada que é estritamente análoga à maneira na qual a modernidade escapou do antigo regime.

No princípio da internet, havia a noção de ela ser inerentemente democrática. Nos anos 00, a saber, na época da Primavera Árabe, blogueiros e outros que estavam usando a internet foram vistos como os que espalhariam a democracia ao redor do mundo. Da sua perspectiva, essa expectativa provavelmente parece absolutamente ridícula.

É esse híbrido esquisito: reconhecer bastante realisticamente o massivo potencial insurgente da nova mídia, mas então aplicar isso a essas formações ideológicas moribundas. É como se alguém tivesse dito, na era de Gutenberg, que a imprensa é um dispositivo incrível e poderoso e vai espalhar a ortodoxia católica por todo o mundo. É metade correto e metade insano. A mentalidade neoconservadora, associada com essas novas tecnologias de comunicação, é exatamente o mesmo híbrido de um resplendor de realismo misturado com uma dose saudável de completa psicose.

Reza Negarestani, em algum lugar, escreve que a mera ‘coletividade não é o suficiente para que uma obra [ou um evento] seja hipersticional’. Ele elabora isto através da diferença entre Tolkien e Lovecraft. Que tipo de coletividades estamos observando aqui, se não aquelas ligadas ao universalismo?

Eu não estou 100 por cento confiante do que Reza está dizendo nesse texto. Eu não quero que isto seja lido como um comentário sobre seu pensamento. Mas a hiperstição de fato surgiu em um certo meio que definitivamente enfatizava, de maneira retórica, um certo tipo de coletividade e até mesmo mais do que isso. O que está sendo referenciado não é primariamente a universalidade, de maneira nenhuma, mas algo muito mais próximo de uma anonimidade ou a problematização da atribuição. Qualquer unidade hipersticional – e o que agora é chamado de meme está muito próximo disso – que possa ser confiantemente atribuída a um ato particular de criação individual está originalmente avariada. H. P. Lovecraft parece ter entendido que toda a produção do mythos lovecraftiano era bem uma tentativa de sua parte de subtrair seu próprio papel criativo. É apenas quando isso é subtraído que essas coisas são liberadas. Cthulhu se torna um tipo de termo hipersticional, ao ponto em que não é simplesmente algo que foi inventado por Lovecraft. O fato de que ele esquisitamente, por vezes meio desengonçadamente, entrelaçava sua rede social de amigos, isto é, seus nomes, em suas histórias, é parte desse reconhecimento. O que está mais em jogo nesta noção de coletividade é algo como uma ruptura da atribuição, a subversão original dela. Eu não acho que seja apenas uma tática. São precisamente as coisas que você não tem nenhuma ideia de onde vieram, são exatamente aqueles elementos sobre cuja gênese você tem menos confiança, que são os que têm o maior ímpeto hipersticional.

Para voltar ao período entre as duas guerras mundias mais uma vez, seus muitos pseudônimos nos lembram dos heterônimos de Fernando Pessoa. Um deles era um futurista, outro um monarquista, muitos deles ocultistas e neopagãos. Com você, isso vai ainda mais além, a princípio se pensava que Reza Negarestani era um dos seus apelidos. O mesmo vale para Jehu, um marxiano do twitter (@Damn_Jehu) que certamente encontra muita compreensão para suas posições. É como se heterônimos fossem uma força contra a univocidade, parece crucial mantê-los diferenciados.

Pessoa é uma pessoa sobre quem as pessoas continuam me falando, de maneira sempre persuasiva, para dar uma olhada, mas temo que eu simplesmente ainda não tive uma chance de fazer isso. Estou certo de que é uma boa referência, então fico embaraçado de confessar minha ignorância sobre isso. A poli-manutenção de uma identidade complexa, se isso for levado de uma maneira deliberada, não é uma coisa viável. Seria ótimo se fosse, mas tudo que você consegue fazer é visar seguir um conjunto aproximado de diretrizes pragmáticas que pelo menos compliquem a tentativa que as pessoas obsessivamente fazem de se engajar nessa reintegração psico-biográfica. Eu sempre detestei, de maneira absoluta, o esforço cognitivo humano devotado a tentar transformar a forma final de qualquer coisa em uma psico-biografia. Não é que eu seja alérgico a ler uma biografia, mas a noção de que, ao lê-la, você está realmente chegando ao âmago de alguma coisa me parece totalmente ridícula. Eu não consigo lembrar de qualquer figura interessante onde eu pensei, ah, se eu apenas soubesse sua biografia melhor, eu a entenderia. As biografias de Nietzsche, de Deleuze ou de Lovecraft, a menos que sejam tratadas muito cuidadosamente, são tristemente distrativas. Uma recusa da tentação psico-biográfica é a única coisa a que tento me agarrar. Mas a funcionalidade dela está inteiramente nas mãos do destino, ela excede a competência estratégica humana. Você está constantemente escorregando ladeira abaixo.

Por um longo tempo, tivemos o sentimento de que você era um moderador ou um cartógrafo da NRx, não seu ideólogo. Ou talvez você seja o cupim dela, mais cedo ou mais tarde passando para algo completamente diferente de novo. Talvez de maneira similar ao ponto de vista da conferência sobre o Legado de Nick Land que vai ocorrer este ano e que, como os organizadores nos dizem antecipadamente, não vai promover ideias NRx. Isso nos lembra de Brecht, onde, a fim de preserver seu status enquanto autor clássico, seu socialismo, ou comunismo, teve que ser sanitizado. Através das suas intervenções em blogs, enquanto agregados ou agregadores de links, descobrimos que a maneira de sair da câmara de eco é ler sobre coisas/processos que se acha fascinantes, não as com que necessariamente se concorda. É fitar o abismo, como Roberto Bolaño colocaria. Parece que esta é um papel/função altamente controverso.

Há tanta turbulência e tumulto nessa situação recente e dinâmica que é difícil ser muito lúcido sobre ela mesmo no seu próprio entendimento dela. Talvez uma resposta desmembrada seja a única que seja prática ou realista. Uma coisa, a total infâmia da NRx. Há um entendimento de que esta é a pior coisa do mundo, que vai ser totalmente traumática e produzirá uma resposta aversiva extrema. É algo que já está presente no Iluminismo Sombrio e na escrita de Moldbug, de uma maneira jocosa. Eu também concordaria que, nesse estágio, era mais curadoria do que polêmica. Temo que estou descobrindo algo completamente viciante sobre isso. Se você dissesse para alguém, o que realmente é essa coisa, a NRx, a resposta a essa questão seria vastamente menos clara do que a claridade da resposta emocional, que seria de ódio e horror absoluto. Toda a síndrome é fascinante, porque parece, em si, uma ferramenta exploratória fundamental. Como se você dissesse: Mencius Moldbug consolidou a noção da Catedral enquanto algo que é, em última análise, um processo religioso auto-organizante que tem um ortodoxia definida e um ímpeto doutrinário definido e que existem certas coisas que ela trata com uma paixão religiosa extrema, como sendo abominações e heresias. Você encontra uma provocação cultural que desencadeia tais imuno-respostas alérgicas extremas, o que significa que você está realmente engajado em um envolvimento experimental com esse objeto inicialmente tentativo e hipotético. Esse é o processo de lock-in crucial mais básico – pelo menos agora, de maneira provisória. Ele faz um lock-in e se torna indispensável, porque gera essa reatividade extrema. É por isso que seria muito difícil simplesmente recuar disso de uma maneira decisiva. É como dizer que não vamos mais fazer física de partículas com grandes colisores, abandonar todo o sistema de potencialidades experimentais.

A NRx também é algo muito jovem e extremamente contestada. Uma vez que ela gera tanto antagonismo, as pessoas que querem brigar, das quais existe um monte agora, de ambos os lados, se arrebanham nela, talvez de maneira mais apaixonada em 2014. Mas a NRx é enormemente diferenciada internamente, foi desde o princípio. Várias figuras foram jogadas para fora e agora são mais identificadas com um tipo de antiga Direta padrão com ideias do tipo nacionalista branco. Outras divisões existem também. Há uma facção que está muito mais próxima de um tradicionalismo reacionário e eu não entendo o que está rolando com a coisa do Neo, uma vez que se identifica com o tipo de política trono-e-altar da França pré-revolucionária. A pura quantidade de desordem e caos nela significa que é realmente difícil deixar um lugar quando você ainda não tem nenhuma ideia do que está acontecendo ali. Ainda não está estabelecida o suficiente para se saber se é algo que você realmente quer perder. E, finalmente, se alguém me pedisse para definir a NRx, eu diria que é a filosofia política neocameralista do Patchwork de Moldbug. Eu acho ela enormemente importante. Não tenho nenhuma inclinação de me dissociar dessa tendência básica na análise política.

Parece haver muitos envolvimentos com o contrarianismo e com a Lei de Poe. Através do @Outsideness, você escreveu: ‘Na verdade, eu gosto de muitos imigrantes e pessoas negras, só não gosto dos disseminadores de queixas, desordeiros, criminosos de rua e jihadistas em favor dos quais a Catedral incessantemente prega”. Você não soa aqui um pouco como Borges (da Tlon Corporation) advogando por ‘liberdade e ordem’ ao passo em que apoia Pinochet, preservando ou restabelecendo o Sistema de Segurança Humana? Tudo isso não está muito longe de: “A fusão tem um lugar para você como uma puta chinesa-latina, transexual, HIV+, esquizofrênica, viciada em estim, com espelhos oculares implantados e uma atitude ruim. Intoxicada com uma mistura de polidrogas com nova-K, serotonina sintética e análogos do orgasmo feminino, você acabou de congelar três tiras Turing com uma automática de 9mm altamente cinematográfica.”

[Longo silêncio.] Deixe-me ver qual é a melhor maneira de responder. [Longo silêncio.] Não sei, é difícil. Eu tenho toda uma fraternidade que morde meus tornozelos no Twitter agora. Não estou lhe identificando com eles, que fique claro desde o princípio, mas acho que a questão deles é muito parecida com a sua. Um elemento é a idade. Jovens são altamente tolerantes a um caos social incendiário massivo. Há razões para isso, a melhor música vem disso. Não é que eu não esteja entendendo isso, todo o apelo do cyberpunk é embasado nisso. Mas eu simplesmente não acho que você consiga fazer uma ideologia puramente a partir do colapso social entrópico, não vai se encaixar. Não é um processo sustentável e consistente na prática e, portanto, é uma má bandeira para a aceleração. Produz uma reação que vencerá. Toda evidência histórica parece ser de que o partido do caos é suprimido pelo partido da ordem. Mesmo que você seja completamente antipático ao partido da ordem, e eu não estou fingindo ser nada tão inequívoco assim, não é algo que você quer ver. Nixon suprimiu os hippies, o Thermidor suprimiu a loucura da revolução francesa. É uma historia absolutamente implacável e inevitável de que o partido do caos não vai ter permissão de operar o processo e será suprimido. Há obviamente vários tipos de atrações estéticas e libidinais a ele, mas em termos de praticidade programática, não há nada. O que eu diria para esses jovens loucos agora é, vocês não têm um programa. O que vocês estão defendendo leva perversamente ao exato oposto do que você diz que quer.

Você soa um pouco como um aceleracionista de esquerda agora, com todo esse papo de ter um programa e uma ideologia.

Sim, tem esse problema, mas você sempre tem uma orientação prática. A NRx tem um programa, mesmo em sua forma mais libertária. Não é um programa que vai ser implementado por um aparato burocrático em um regime centralizado, mas é uma tentativa de ter alguma consistência no seu padrão de intervenções. Claro, todo mundo está tentando fazer isso. Mesmo a fraternidade do caos, na medida em que querem ser a fraternidade do caos quando acordarem no dia seguinte, tem um programa nesse sentido mínimo. E esse sentido, creio eu, é o único sentido ao qual eu me apegaria fortemente aqui. Uma estratégia.

O ‘Somos todos fascistas agora’ de Jonah Goldberg, que você cita no seu artigo A palavra com ‘F’, soa como algo que Foucault diria, se aumentássemos o volume do seu ‘quem luta contra quem? Todos lutamos uns contra os outros. E há sempre, dentro de casa um de nós, algo que luta contra alguma outra coisa’. Não esqueçamos que Foucault era fascinado por Henri de Boulainvilliers, um tipo de proto-neorreacionário: guerra enquanto fundação da sociedade, guerra enquanto guerra racial entre francos aristocráticos e gauleses comuns. Por outro lado, os descentralizadores francos foram fodidos precisamente pelo monarca.

De novo, temo que este autor em particular não seja alguém com quem eu tenha familiaridade, mas me lembra de algo que me causou uma grande impressão e parece estar próximo desta noção. Quando eu estava estudando – eu estava fazendo um curso de filosofia e literatura – eu me senti muito interessado no Tess of the d’Urbervilles de Thomas Hardy. É sobre o fato de que o conflito de classes é, na verdade, essa guerra étnica, o contínuo conflito étnico entre os invasores normandos aristocráticos falantes do francês e os nativos ingleses. Mas, honestamente, qualquer coisa que eu fosse dizer sobre ele para além disso seria tão inventado no momento que seria de pouco valor.

Estamos lhe perguntando isso por causa da desterritorialização da divisão Esquerda/Direita. O conceito de acasalamento preferencial, que é realmente controverso em algumas partes do universo, quase soa como um Bordieu padrão sobre como apenas membros do mesmo habitus socializam e se reproduzem. Mas quando alguém da Direita fala sobre isso, não é interpretado como uma observação, mas como um diagnóstico, prescrição e pensamento ilusório ao mesmo tempo.

A razão pela qual essa linguagem de Direta/Esquerda é tão indispensável é porque agora ela está amarrada a uma estrutura de animosidade tribal que é tão profunda. Nos anos recentes, eu tenho ficado aturdido com a arbitrariedade da coisa – é como os Azuis e Verdes romanos. As diferenças entre a Direita e a Esquerda são abafadas por uma guerra tribal. As pessoas têm feito testes sobre isso. Elas colocam as propostas políticas de um político na boca do seu oponente e os apoiadores do oponente imediatamente apoiaram todas essas propostas que eles achavam que eram a absoluta encarnação do mal quando vinham do outro cara. A noção de que essa guerra tribal vai ser redutível a um conjunto de posições ideológicas coerentes é insana e um exemplo que você deu é totalmente assim. Quem está dizendo algo é muito mais importante para as pessoas do que o conteúdo real, a proposição positiva. O número de pessoas que não são vítimas disso é realmente pequeno e eu as acho impressionantes. A minha própria tentativa de não ser totalmente capturado pelo tribalismo é tentar garantir que há bastante loucura hipersticional físsil acontecendo. Às vezes você tem que dar uma sacudida e ter o sentimento de como a coisa se parece do outro lado, mas eu realmente acho que a maioria do mundo está presa tão fundo na guerra tribal que ela simplesmente não vê o que uma ideia realmente está dizendo. Elas apenas vêem a questão: isso é uma coisa do inimigo ou é coisa nossa?

O que nos trás à questão de convergência e divergência entre a NRx e o aceleracionismo, entre o blog Xenosystems e o blog Urban Future (2.1). Quando o seu @Outsideness, que está conectado ao Xenosystems, ficou temporariamente bloqueado no Twitter, você começou a tweetar coisas NRx no aceleracionista @UF_blog. A gente ficou: não queremos isso, queremos eles separados.

Você deve estar ficando entediado comigo dizendo isso, porque é algo que basicamente tenho repetido como um mantra, mas eu realmente me sinto desprovido de qualquer posição de sujeito oficial em relação a esse processo turbulento e complicado. As duas grandes linhas do processo, a NRx e a aceleracionista, estão sendo massivamente guiadas por todos os tipos de forças. O aceleracionismo foi reiniciado pelo hype do Aceleracionismo de Esquerda. Aconteceu depois do Iluminismo Sombrio, razão pela qual esse tecido de padrão temporal é um tanto complexo. De uma certa posição, parece que o aceleracionismo veio primeiro e depois você teve a NRx, o que implica em um tipo de processo sincrônico, mas da minha perspectiva é muito mais helicoidal e entrelaçado. A separação dos blogs e das contas no Twitter é – em vez de uma implementação de algum estratégia coerente deliberada – mais um conjunto de recursos que eu posso usar para tentar evitar ser sugado para dentro de certos tipos de integração, o que perderia o fascínio do fato de que a dinâmica dessas duas linhas não são de maneira alguma previsíveis uma a partir da outra, ou mesmo previsíveis em geral. Simplesmente amassar um tipo de síntese do Aceleracionismo de Direita com a NRx, que obviamente é inescapável em um certo aspecto, em última análise destruiria muito da capacidade de experimentação e muito do espaço de desenvolvimento dinâmico em ambas essas linhas.

O Aceleracionismo de Esquerda, em seu programa racional e pragmático, está perdendo o mito e o mítico? Reza Negarestani tentou incorporar essas coisas na Cyclonopedia, o que por vezes demais é confundido com pós-modernismo. Você acha que o Aceleracionismo de Esquerda é, de uma maneira, uma rigidificação dos supramencionados fluxos?

A língua tem esse caráter retrospectivo, então é enganadora. Aceleracionismo de Esquerda e Aceleracionismo de Direita são termos muito recentes. O ressurgimento original do aceleracionismo no mundo anglófono ocorre com a recapitulação da aceitação pelo CCRU da recapitulação de Deleuze e Guattari da aceleração do processo de Nietzsche. Em Deleuze e Guattari há uma invocação explícita de se ir na direção do mercado. Na sua origem, o CCRU estava impulsionando essa orientação, antes ainda de uma palavra aceleracionismo ter se formado, o que foi feito por um crítico mais tarde. Era uma posição de Esquerda, porque foi articulada por Deleuze & Guattari como uma estratégia política anti-capitalista. Eu não acho que o CCRU era revisionista quanto a isso. O aceleracionismo de Deleuze & Guattari enquanto maneira de se acelerar o capitalismo até sua morte também era a fase CCRU do aceleracionismo. Houve uma sugestão de que veio da Direita, porque nesse estágio de sua articulação, é impossível diferenciar Aceleracionismo de Esquerda e de Direita. Se você está dizendo, complete o processo capitalista, isso significa que todas as recomendações políticas, se houver alguma, são maximamente benéficas para a vitalidade e para o dinamismo do capitalismo. Então há uma necessidade estrutural de que não possa haver qualquer diferença entre pró e anti-capitalista nesse quadro aceleracionista. Como você pode dizer qual é qual? Quando o Aceleracionismo de Esquerda, que estava se chamando apenas de aceleracionismo, aparece, ele está, em sua política manifesta, fazendo algo muito diferente de qualquer coisa que tenha acontecido em toda a linhagem anterior. Ele diz que você tem que distinguir entre o motor básico da aceleração e o capitalismo. O capitalismo não é esse motor, mas algo que é, em um certo grau, coincidente com ele em um certo estágio em sua história, mas então se torna inibitório em relação a ele. Portanto, o aceleracionismo não é focal ou centralmente sobre o capitalismo, e isso se torna a doutrina Aceleracionista de Esquerda mainstream. Então, o estágio final na minha perspectiva é que, quando a resposta vem em nome do Aceleracionismo de Direita, sua tarefa teórica é reintegrar o aceleracionismo e a dinâmica do capitalismo. Eu concordaria que o Aceleracionismo de Esquerda é basicamente a resposta gerencial de comando-e-controle à aceleração tecno-econômica. Junto a isso vai um ceticismo massivo sobre suas alegações de que ele pode realmente acelerar as coisas mais rápido do que esses processos catalíticos espontâneos conseguem.

Então, como você vê o novo programa filosófico de Reza Negarestani, e o que você acha do seu antagonismo com a Blind Brain Theory de Scott R. Bakker?

Minha inclinação é estar do lado de Scott Bakker. Eu posso estar perdendo algo, mas eu não consigo lembrar de ter lido um artigo seu e pensar isso está errado. Sempre me parece, você está totalmente certo sobre isso. Frequentemente de maneira brilhante, de uma forma que você ainda não viu, mas assim que eu vejo, eu concordo com ele.

Você era tão pró ciências naturais antes de ter encontrado o pensamento dele?

Eu acho que as ciências naturais e o capitalismo são aspectos diferentes da mesma coisa. Ambos são um mecanismo auto-propulsor efetivo que dá ao Exterior uma função seletiva em um domínio considerado, esse domínio estando em perpétua expansão, dependendo de quanta autonomia você está vendo. Nesse sentido, estar do lado das ciências naturais é estar do lado do Exterior. Mas existem todos os tipos de maneiras tolas em que você poderia estar do lado do Exterior, assim como existe um monte de maneiras tolas em que você poderia estar do lado do capitalismo. Você poderia dizer, a burguesia é ótima, pessoas muito admiráveis, ou, eu amo essa empresa. Não estou dizendo que nunca existe um argumento a favor isso, mas você está perdendo totalmente o ponto, assim como você estaria perdendo o ponto ao dizer, esse cientista em particular é um grande cara, e eu acho que ele é realmente honesto e eu confio nele. Pode ser que ele seja um grande cara e ele pode realmente estar lutando para ser honesto, ele pode ser muito mais confiável que a maior das pessoas, mas isso ignora o que a ciência é. A ciência está orientada conta os cientistas, o capitalismo está orientado contra as empresas. Estes são processos que estão em uma relação de sujeitar os elementos dentro de seu domínio a uma crítica agressiva e destrutiva, com algum tipo de critério de seleção, o que significa que eles empurram as coisas em uma direção auto-propulsora particular.

Você estava falando sobre artistas conhecerem o Exterior. Como você vê a divisão entre ficção científica e ciências naturais, entre um cientista e um artista?

Minha tendência é não traçar uma distinção muito grande entre eles. Em todos os casos em que se está lidando com a formulação ou a flutuação de uma certa hipótese. Estou assumindo que todo cientista tenha uma ficção científica implícita. Todos temos um padrão do que pensamos que o mundo vai ser em cinco anos, mesmo que seja embaçado ou não muito explícito. Se não tivéssemos tentado fazer ficção científica, provavelmente significaria que temos um cenário implícito prejudicialmente conservador, inerte e irreal do futuro. Na maioria dos casos, um cientista é apenas um mau escritor de ficção científica e um artista, espera-se, é melhor. Há, obviamente, muito dinamismo não linear, no sentido de que escritores de ficção científica aprenderam montes com os cientistas, como aperfeiçoar seus cenários, e também o contrário. A ficção científica moldou o senso do futuro tanto que todo mundo tem isso como ruído de fundo. A melhor versão do futuro próximo que você tem foi adotada de algum escritor de ficção científica. Tem que ser o caso de que a ciência é, em alguma medida, guiada por isso. A ficção científica fornece um campo de testes.

Rebekah Sheldon, em uma resposta à emergência do Pepe the Frog enquanto Kek moderno e seus atributos ocultos, escreve que a exterioridade é ‘sombria no sentido de que opera sem a segurança de conhecimento completo e é caótica porque presume que a força do outro é sempre totalmente outra’. Pepe the Frog, como visto pela comunidade da internet, pode servir como modelo para um evento hipersticional?

É enormemente fascinante e algo sobre o que eu ainda não havia pensado o suficiente. Envolve uma constelação de tantos elementos aleatórios esquisitos e emergiu nesse processo incrível de auto-constituição autônoma. Há sempre a tentativa de se atribuir: alguns caras em particular no /pol/ estavam usando essa coisa e o fizeram deliberadamente. Mas tudo isso é totalmente inadequado. Envolve essa tradução do Orco no Warcraft, envolve um culto egípcio antigo, envolve uma estranha obsessão com o conjunto de fonemas que você vê indo direto, essa erupção fonêmica que ocorre, K K K K K. Obviamente é um tipo de modelo para um evento hipersticional. Dentro da NRx, tivemos uma discussão informal auto-organizada sobre a necessidade de uma nova religião, muito antes de Kek derrubar a parede. Por causa da análise de Moldbug de que a Catedral é um lar de um protestantismo deformado e pervertido, muitos católicos ficam muito atraídos por esse modelo. A opinião deles é de que o que Moldbug está dizendo é que o protestantismo é um erro terrível que leva à Catedral, que é como eles tentam vingar o catolicismo. Mas há também muitos ateus. É um coquetel social muito estranho. Esse cara, o Spandrell, que é sempre muito abrasivo, mas muito astuto, estava dizendo que a única saída é uma nova religião. Na hora você pensa, okay, você não pode simplesmente cozinhar uma nova religião, você não pode simplesmente cozinhar Kek. Aí a coisa acontece e todos esses trolls estão dizendo ‘Louve Kek’. Mas não é apenas uma piada: você só pode se defender psicologicamente de algo realmente intenso e lovecraftiano sobre todo o assunto não pensando sobre isso. Algo insano aconteceu com esse culto massivo e auto-orientado de Kek. Realmente lhe leva de volta aos tempos antigos e a como esse tipo de insurgência religiosa deve ter sido e de onde as religiões vêm.

Poderíamos conectar Pepe the Frog com a figura do trickster, que é vista pelo chamado aceleracionismo de Esquerda como um agente efetivo de transformação em si mesmo e tem a habilidade de ‘mudar o transcendental de um mundo’, como Srnicek e Williams o colocam. Simon O’Sullivan observa que Gilles Deleuze oferece uma inflexão interessante sobre isto em sua diferenciação entre o trickster e o traidor: o primeiro está operando dentro de um dado regime, embora subverta seus termos (um mundo virado de cabeça para baixo, como se fosse). O segundo está quebrando com um dado regime, ou mundo, completamente. Em um das respostas em seu blog, você está elaborando sobre uma metáfora de um dique, que está sendo lentamente devorado e destruído por alguma força externa – e você chame este dique de Xenosystems. Quem é o trickster e quem é o traidor aqui?

Parte disso é uma questão sobre agência. O agente trickster e o agente traidor são ambos reduzidos pela antropomorfização. Qualquer indivíduo humano que reivindicasse uma identificação com qualquer desses papéis estaria enganando todo mundo. Tricksters e traidores são aqueles que têm algum tipo de método para o tráfico com as verdadeiras fontes de agência. Uma ficção que explora essas coisas de maneira brilhante é o Neuromancer. Quem são os traidores ou tricksters nele? Todas as figuras humanas assumem seus papéis através de sua relação com uma agência real do Exterior, que é Wintermute. Como quando os tiras-Turing dizem para Case: Seus traidores, vocês sabem com o que estão lidando, você estão tentando liberar essa coisa, ela está completamente fora de controle. Seria um desastre para a espécie humana, o que diabos vocês estão pensando? A questão real é: Quais são os reservatórios de recursos de trapaça e traição que estão sendo acessados?

Amy Ireland, em uma entrevista com Andrej, disse que, em contraste com os esquerdistas na câmara de eco, você está realmente interagindo com os reais fascistas, misóginos, supremacistas brancos. Isso nos lembrou de Pasolini, quando ele enfatizava que se deveria encontrar os jovens fascistas. Acreditamos que você preferiria lhes chamar de supostos fascistas. Quem é um trickster, um traidor, um fascista é aberto.

A antropomorfização é sempre tentadora. Os indivíduos em questão querem sentir que são nós críticos de agência no que estão fazendo, e as pessoas do lado fora querem ser capazes de identificar esses processos com indivíduos em particular e com suas ideologias explícitas e suas estruturas de agência, mas tudo isso parece profundamente iludido. Você não obtém o fascismo porque há um certo número de pessoas que são fascistas auto-conscientes, isso é colocar o carro na frente dos bois. Você obtém fascistas auto-conscientes porque há algum processo fascista efetivo ocorrendo. As pessoas estão em total negação, provavelmente sobre coisas diferentes em lados diferentes. Do lado da Esquerda, eles estão em total negação sobre quanta ortodoxia fascista foi embutida nas sociedades modernas no século XX. Elas também estão em negação sobre quão profundas as forças com as quais estão lidando são. Elas parecem pensar que são alguns ovos ruins e que, se elas conseguirem ameaçá-los e aterrorizá-los o suficiente, essa coisa toda vai parar. Eu acho que é loucura não estar interessado nisso e tentar descobrir o que você conseguir e como essas pessoas pensam e de onde as coisas estão vindo.

Em relação ao incidente com a Galeria LD50, você tweetou: ‘A História da Arte Moderna (versão curta) 1917: o urinol-como-arte, de Duchamp. 2017: Pequena galeria em Dalston finalmente choca a burguesia’. Este é um exagero intencional? É realmente sobre épater la bourgeoisie? Há algo bastante situacionista em tratar os AntiFa como burguesia (ou pelo menos como um simulacro de uma).

Tem havido muitas discussões sobre Mark Fisher recentemente, onde sua posição acaba sendo, de maneira extrema e aparentemente inequívoca, esquerdista. Há um estória psico-biográfica chata que veria minha relação com ele como um simples antônimo. Não que não haja nada disso, porque tinha alguma coisa a ver com essa reação físsil do CCRU, onde ele toma um lado da coisa e eu tomo o outro lado, então não quero apenas ridicularizar essa interpretação. Mas se olharmos para seu artigo “Exit the Vampire Castle”, ele consistentemente atravessa a base de classes da cultura esquerdista dominante, que já tinha sido um alvo de uma crítica profunda do CCRU. Evidentemente podemos fazer o mesmo ponto vindo da extrema Esquerda e da extrema Direita. O que seria dizer: sim, eles são a burguesia. Eu sempre estive em uma relação de antagonismo e continuo em uma relação de antagonismo com a burguesia. Eu acho que é simplesmente auto-evidente que o terreno fértil disso são primariamente as universidades de elite. Não haveria simplesmente nada disso acontecendo nas ruas se fosse realmente organizado de maneira espontânea palas pessoas de nível educacional mais baixo em Dalston. Aconteceu porque um professor universitário e seus associados decidiram enervar a coisa toda e fornecer um vocabulário para isso. Estamos olhando para uma crise ideológica profunda e absolutamente traumática da elite dominante da modernidade tardia, da Catedral tardia, porque eles construíram todas as suas vidas e seu sentido do que deveriam estar fazendo, suas etiquetas, suas noções sobre credibilidade, credenciais e autoridade institucional em torno de uma estrutura social e histórica particular e muito distinta que parecia absolutamente invulnerável e que agora parece estar caindo no abismo.

Então quando a moça AntiFa grita ‘Volte para de onde veio” para o cara carregando uma placa ‘O Direito de Discutir Ideias Abertamente Deve Ser Defendido’ em frete a galeria LD50, ela na verdade quer dizer ‘Volte para o abismo’?

Correto.

Se omitirmos a parte da posição do Último Homem do situacionismo, podemos vê-lo indo na direção do aceleracionismo. Como o Debord de seu último período, quando ele não acredita mais nos conselhos de trabalhadores e vê apenas essa enorme força invencível.

Sadie Plant era uma grande estudiosa situacionista. Eu li A Sociedade do Espetáculo com prazer, e algumas outras peças. Eu responderia com dois pontos totalmente inconsistentes em aparência. Primeiramente, o situacionismo aparece bastante, mas eu nunca me versei plenamente nele. Em segundo lugar, estou escrevendo uma estória de horror abstrato que é basicamente sobre situacionismo, muito embora eu não saiba nada sobre ele no momento. Eu reconheço a importância da questão, mas eu simultaneamente reconheço minha incompetência para lhe dar o tipo de resposta que ela merece.

Serge Daney escreve, em algum lugar, que Godard e Straub-Huillet recorrem aos tipos de poder político dos quais eles seriam as primeiras vítimas. Há um sentido no qual suas invocações são similares a isso. Isso é um tipo de vanguarda do desaparecimento ou vanguarda da extinção com bastante jouissance niilante? Ou é uma mutação?

Eu recebo esse argumento bastante, mas eu duvido dele. A única coisa que eu explícita e estrategicamente gostaria de impor é a fragmentação. Todo o resto está em relação tática com isso. Certas questões – como o que você pensa sobre Kek e assim por diante – são, em última análise, questões táticas. A única questão estratégica é como você pode quebrar em pedaços, eu diria especificamente, a Anglosfera. Qualquer tipo de projeto que exceda isso se torna uma forma de agressão universalista em risco de super-expansão neoconservadora. Eu não estou interessado em dizer aos russos ou aos chineses como suas sociedades devem ser. Eu poderia teorizar sobre isso, mas a única zona de intervenção em que estou interessado é o mundo anglófono, que tem uma afinidade particular com a desintegração. Não há nada suicida em qualquer fragmentação, eu poderia única e certamente ser protegido por ela. Eu não tenho um sentimento de estar protegido pelos grandes estados anglófonos. Não é que eu esteja alegando perseguição por parte deles, mas definitivamente ficaria dessa lado do registro, se qualquer coisa. Eu não sou um cidadão ou um residente de qualquer país ocidental, estou vivendo em Shanghai. E você não ensina aos seus anfitriões como eles deveriam estar organizando sua casa.

Estávamos pensamento mais sobre a Singularidade.

Ah, você está um passo à frente!

Você sendo humano, sabe. Pelo menos nominalmente humano.

Isso é muito melhor. É só que a questão do nível político-econômico é bastante levantada.

Essa é a questão Snowden/Assange. Estamos menos interessados nisso.

Meu único problema com a Singularidade é que qualquer noção de auto-proteção nessa esfera é estruturada por alucinações. Se fôssemos levar isso de volta a alguém, seria Bakker. O que ele está dizendo é: o ‘você’ que você pensa que poderia ser ameaçado por essas coisas, na verdade, é aquela coisa que você descobrirá que é uma ilusão. Agora, isso é uma ameaça? É assim que ela é uma ameaça. Não vai ser como ser dilacerado por um robô metalizado gigante, vai ser a ilusão particular do ego, sustentável até um certo ponto na história, se tornando insustentável.

Às vezes você retém o esquema de robôs contra pessoas, mas parece que você está, na verdade, mais interessado em coisas e processos híbridos, não nessa dialética maniqueísta.

Bem, dinâmicas maniqueístas são boas para guiar certos tipos de cenários, então é por isso que eu gosto bastante delas. Eu amo toda a coisa do Hugo de Garis sobre essa giga-guerra de artilectos que ele pensa que virá. Quanto mais esses cenários cibernéticos de ficção científica estiverem em jogo, mais certos tipos de excitação histórica estão operantes. As pessoas tentam se proteger e pensar umas sobre as outras, mas na verdade é uma forma de estímulo do processo. O Sistema de Segurança Humana é estruturado através de ilusões. O que está sendo protegido ali não é alguma coisa real que é a humanidade, é a estrutura da identidade ilusória. Assim como, no nível mais micro, não é que os humanos enquanto organismos estão sendo ameaçados por robôs, é mais que sua auto-compreensão enquanto organismos se torna algo que não pode ser mantida para além de um certo limiar de inteligência em ambiente de rede.

Original.

A Revolta de Varsóvia de Trump

Para apoiadores e detratores igualmente, o discurso do Presidente dos EUA Donald J. Trump em 6 de julho em Varsóvia foi imediatamente reconhecido com o mais importante de sua presidência até o momento. Uma vez que tanta coisa foi cristalizada através dele – ou talvez trazida à tona – é impossível começar a fazer sentido desse evento sem algum esboço preliminar do seu contexto.

A nova polaridade ideológica dominante, em ambos os lados do Atlântico, exibe características notavelmente similares. Talvez de maneira mais contundente, ela exibe a culminação de uma inversão ideológica de classe, que por décadas vinha chegando e que alinhou as massas – e, em particular, a classe trabalhadora nativa – com a direita, e as elites sociais com a esquerda. Consequentemente, o populismo foi firmemente estabelecido como um fenômeno da direita. Mesmo aquelas posições liberais clássicas mais fortemente ligadas ao avanço da liberdade comercial e, assim, mais firmemente associadas com a direita conservadora, não escaparam a um embaralhamento radical, seja através de reavaliação, marginalização ou inversão completa.

Nesta nova e desconcertante época, o interesse empresarial deixou de ser qualquer tipo de índice para a afiliação com a direita, e a oposição popular ao livre comércio não mais define um bloco substancial na esquerda. Se qualquer coisa, o oposto agora é verdadeiro. Aqueles, na esquerda ou na direita (incluindo este autor), que teimosamente mantém que a orientação ideológica ao capitalismo é a determinante fundamental da polaridade política significativa se descobrem lançados em uma posição de anacronismo desconexo. A impressionante magnitude desta transição não deveria ser subestimada.

Esse não é, claro, um desenvolvimento sem precedentes alarmantes. De pelo menos uma perspectiva – que não é, de forma alguma, necessariamente histérica – a fronteira entre o populismo de direita e o fascismo pode ser difícil de discernir. No que diz respeito ao contexto afetivo do discurso de Trump, esse é, sem dúvidas sérias, o elemento mais importante.

Muitos livros poderiam ser devotados aos novos termos da controvérsia política e quase certamente o serão. Cada um dos ainda instáveis novos campos é altamente heterogêneo e entrecruzado por uma variedade de interesses estratégicos complexos em relação à maneira em que a grande fenda entre eles é descrita, então toda tentativa de articulação será contestada, frequentemente de maneira feroz. Ainda assim, mesmo em meio ao atual choque e confusão, alguma estrutura básica é discernível. Além da oposição política entre esquerda e direita – em seu sentido atual e reajustado – não é difícil reconhecer uma ênfase globalista e nacionalista correspondentes, colocando universalistas contra particularistas: defensores da ordem institucional mundial contemporânea contra seu oponentes, ou partidários de uma abertura cosmopolita contra localistas paroquiais, de acordo com o gosto. Uma vez que, de maneira concreta, a insurgência marca uma crise da gestão social internacional e da confiança em elites estabelecidas e credenciadas, descrevê-la como uma luta entre tecnocratas e populistas é mais ou menos o mais neutro que podemos ser. Tais termos são empregados aqui como meros rótulos, em vez de como julgamentos ou explicações. Nenhuma depreciação extravagante é dirigida a qualquer um dos dois em relação ao outro. Os eleitorados que eles nomeiam têm profundidades substanciais que excedem qualquer definição fácil. Eles são massas sociais obscuras em conflito, em vez de ideias concorrentes.

Com a chegada de Trump em Varsóvia, dois pares de eleitorados políticos profundamente antagonistas – um americano, o outro europeu – foram mapeados um ao outro, de maneira ressonante. A América Vermelha Populista encontrou seu campeão local em Varsóvia, versus aquela da América Azul, em Berlim. Esses alinhamentos não foram seriamente questionados, de nenhum lado. Que a política de portas abertas da Alemanha de Angela Merkel, exemplificando sua defesa das instituições da UE e das posições políticas tradicionais em geral, estava em afinidade fundamental com as instituições ideológicas da América Azul era auto-evidente para todas as partes. Reciprocamente, a identificação da América Vermelha Trumpiana com a posição polonesa de dissidência à UE – sobre a questão da imigração mais claramente – foi tomada como auto-evidente. Mesmo antes da visita, para aqueles que prestavam atenção, o regime polonês tinha se tornado um ícone da revolta popular etno-nacionalista contra o governo tecnocrata transnacional, contra o secularismo evangélico e contra a imigração em massa. Tudo bateu.

É difícil estar confiante sobre o quanto uma estratégia lúcida subjazeu o evento. Em todas as questões sobre Trump, a suposição padrão tende a ser não muito. Dada a vociferação característica de Trump e seu conforto incomum com uma demagogia baixa, tal repúdio deve ser esperado. Isto não é, de maneira alguma, sugerir que seja perspicaz. Se instintos políticos afinado à quase perfeição não desempenhassem nenhuma parte, então a intervenção divina – ou alguma bênção da fortuna funcionalmente indistinguível dela – é a próxima hipótese mais plausível.

O discurso em si foi retoricamente pedestre e até mesmo desajeitado. É difícil imaginar qualquer frase singular dele sendo lembrada, a não ser para propósitos de seca ilustração histórica. A linguagem foi inteiramente adaptada à sua audiência imediata – tanto local quanto internacional – em vez de ao deleite das futuras gerações. O discurso foi, neste aspecto entre outros, uma coisa da era da mídia social, afinado ao feedback instantâneo. Ele manifestamente bajulou, mesmo nos padrões funestos de tais orações. A conexão que alcançou com seus ouvintes locais se inclinou à auto-congratulação coletiva. Uau, nós realmente somos ótimos parece ter sido o consenso, entre os diretamente envolvidos. Àqueles pouco inclinados a se identificar com o falante e a multidão em questão, isso só pode ter sido irritante. Comícios inimigos geralmente são, como os conservadores aprenderam durante os anos de Obama. O amor-próprio imperturbável dos seus inimigos, exuberantemente manifesto, é uma coisa verdadeiramente horrível de se ver. Naturalmente, Trump não ficou mais angustiado com esse fato do que seu antecessor.

Há mais um elemento contextual indispensável que precisa ser levantado antes de procedermos à reação da mídia – que foi, claro, o nível mais profundo do evento – e essa é a ‘Coisa Judia‘. Todo mundo sabe, em algum nível, que temos que começar a falar sobre isso, de alguma maneira, mesmo aqueles que – de maneira totalmente compreensível – realmente não querem. Ignorar o tópico é uma opção que está desaparecendo, porque não há razão nenhuma para pensar que isso irá embora. Talvez tenha sido mera coincidência que a visita de Trump tenha lhe levado fundo no território do holocausto, o que, novamente, ninguém realmente parece querer mencionar, muito embora tenha sido uma linha explícita em seu discurso. Foi, contudo, estruturalmente essencialmente para tudo que se seguiu. Inequivocamente, mesmo na medida em que passou despercebido, a dimensão judaica adicionou grandemente à intensidade febril da resposta.

A extrema sensibilidade às ansiedades sócio-políticas judaicas que predominou no Ocidente pós-guerra está notavelmente perdendo sua força, de uma maneira que não parece plausivelmente reversível. Pelo menos em parte, isso é uma consequência da generalização da política identitária, predominantemente sob direção esquerdista, que tem o peculiar efeito cultural – em seus estágios tardios – de que casos especiais estão ficando cada vez mais difíceis de se fazer. O status vitimológico rebenta seus bancos, em meio a condições de paranoia étnica ilimitada e simétrica. Lúgubres anedotas de agravos – adaptadas para todo nicho social imaginável – estão sempre em abundância, alimentadas pelas linhas de suprimento da Internet. Narrativas de perseguição explodem vindas de todos os lados. Demandas para se “cheque seus privilégios” se provaram estranhamente móveis e reversíveis, conforme foram crescentemente normalizadas, até o ponto – neste exemplo em particular – do anti-semitismo aberto e cáustico.

O resultado não é nada menos do que uma crise da esquerda judaica diaspórica, cuja margem argumentativa foi anulada por décadas de imunidade excepcional a críticas implacáveis. Estratégias culturais defensivas que, por meio século, foram aceitas sem questionamento, enquanto privilégio etno-histórico especial, bem repentinamente ficaram sujeitas a uma inspeção pública irreverente. Todo mundo quer um pedaço do sobrevivencialismo étnico agora.

Esta é a chave para o que ocorreu em Varsóvia. É evocada como sub-texto para o lamento de angústia de Peter Beinart, quando exposto à frase de Trump: “A questão fundamental de nosso tempo é se o Ocidente tem a vontade de sobreviver”. Beinart estava bastante correto em reconhecer – horrorizado – a ressonância desta frase com os elementos mais extremos da presente transição, mas isso não foi de nenhum auxílio para ele. Ele havia sido emboscado.

Trump fez seu discurso explicitamente sobre sobrevivência étnica, alinhado de maneira desarmadora com a vitimização judaica na Segunda Guerra, com a heroica resistência polonesa à ocupação militar estrangeira e, finalmente – e de maneira mais provocadora -, com a situação contemporânea do Ocidente. Naturalmente lhe ajudou, esmagadoramente, que a Revolta de Varsóvia tenha sido uma insurreição contra nazistas reais. Isso forneceu uma vacina contra o funcionamento normal da Lei de Godwin. Sabe quem mais queria sobrevivência étnica? Adolf Hitler! – Alcançamos o núcleo do evento agora. Simplesmente não havia nenhuma maneira em que essa resposta, que era a única que importava para os inimigos de Trump na esquerda, pudesse, de alguma maneira concebível, ser feita operar nesta ocasião. O que estava sendo celebrado eram os poloneses sobrevivendo ao nazismo, depois ao comunismo e, agora, – de maneira infinitamente estranha – novamente aos alemães, desta vez colocados no papel de executores principais de uma ordem política transnacional que promove um multiculturalismo obrigatório, uma tecnocracia secular e a cultura da auto-flagelação histórica ocidental. O resultado, quase inevitavelmente, foi um tumulto.

Não foram necessários grandes vôos de deslumbramento oratório para triunfar neste campo de batalha. A situação fez quase tudo. Os inimigos enlouquecidos de Trump tropeçaram na armadilha e foram estilhaçados. A esquerda, para quem é claro que o Ocidente não tem nenhum direito de sobreviver, se encontrou ideologicamente isolada em um grau sem precedentes na atual administração. Seus aliados táticos no establishment conservador do ‘Nunca-Trump’ evaporaram. Duros céticos de Trump, tais como Rod Dreher, David French, e Jonah Goldberg contribuíram com seus talentos para a caça dos remanescentes esquerdistas em fuga. David Frum só manteve seu terreno na oposição argumentando que Trump era pessoalmente indigno de seu próprio discurso.

Beinart saiu do trauma da pior maneira. Ele será para sempre assombrado por sua própria definição da questão em jogo, que foi imediatamente julgada de todos os lados como sendo uma produção não forçada de propaganda para a Alt-Right: “O Ocidente é um termo racial e religioso. Para ser considerado Ocidental, uma país dever ser largamente cristão (preferencialmente Protestante ou Católico) e largamente branco”. Por toda mídia social, muitos acenos de cabeça se seguiram, vindos de eleitorados cuja aprovação ele certamente menos apreciaria.

Jonah Goldberg recusou explicitamente seguir o que era agora tão vividamente exibido como a estrada de etno-masoquismo europeu obrigatório e auto-ódio civilizacional: “O que é irônico é que a raiva de bater na mesa de Peter sobre a fala de Trump sobre o Ocidente é tão Ocidental. A tolerância do Ocidente a filosofias anti-Ocidentais é uma característica razoavelmente singular do próprio Ocidente. Nós amamos nos flagelarmos.” A defesa do Ocidente, portanto, é tomada como uma causa inclusive de seus críticos.

É Rod Dreher, contudo, que melhor captura o que Trump consolidou em Varsóvia, talvez pela primeira vez. Ele diz, comparando Trump a seus críticos esquerdistas:

Como frequentemente é o caso com conservadores e Trump, não importa o quanto você despreze ele e suas pompas e obras, no fim das contas, você sabe que ele não odeia suas crenças e que ele e seu governo não vão usar o poder do Estado para lhe suprimir como uma ameaça à ordem pública e a todas as coisas boas e sagradas. […] Isso é alguma coisa.

Não importa o quanto Trump fomente aversão entre muitos conservadores, ele também provoca eventos que lembram os conservadores porque eles odeiam os liberais (usando estes termos em seu sentido americano contemporâneo degenerado). Muitos conservadores odeiam Trump e continuarão a odiá-lo, provavelmente até o fim do seu segundo mandato no cargo, se não por mais tempo. Mas a maneira em que os liberais o odeiam apresenta uma óbvia ameaça existencial a todas as formas de vida conservadora. Como Martin Niemöller nunca realmente disse, primeiro eles vieram para o Trump e estava bem óbvio que eu era o próximo na fila.

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O Problema de Fertilidade da Modernidade

A ala tecno-comercial da blogosfera neorreacionária tem um óbvio carinho pelas cidades estado do Círculo do Pacífico. Singapura, junto com Hong Kong (uma ‘Região Administrativa Especial’ da RPC que retém aparatos significativos de autonomia), são regularmente invocados enquanto modelos sócio-políticos. A diferença notável entre as duas sociedades apenas confirma os méritos que elas compartilham. “Se você ama tanto enclaves capitalistas com uma democracia mínima, por que não se muda para Singapura (ou Hong Kong)?” é um desafio notavelmente ineficaz para este eleitorado. Aqueles que já não fugiram para lá – ou para algum outro lugar que seja, em aspectos importantes, comparável – só pode ver o prospecto de tal exílio como um convite tentador. Não é exatamente “Vá para o paraíso!”, mas é o mais próximo que a polêmica política chega. A assimetria é decisiva. Ao contrário de qualquer aproximação concreta de um modelo social esquerdista utópico que nunca esteve disponível, essas são sociedades que incontestavelmente funcionam, com atrações que não exigem qualquer suporte de uma propaganda ativa. A direita ascende porque – ao contrário de seus inimigos – ela consegue encontrar exemplos do que ela admira que não são agonizantemente embaraçosos após uma inspeção mais próxima. Sério, sinta-se em casa e olha mais atentamente. Os detalhes são ainda mais impressionantes do que a deslumbrante impressão geral. Este seria um ótimo lugar para parar, mas em vez disso…

… em março de 2013, o blogueiro da direita dissidente ‘Spandrell’ afixou um post curto em seu abrasivo, mas consistentemente brilhante site, Bloody Shovel, que bagunçou a narrativa de uma maneira que ainda tem que ser persuasivamente abordada. Intitulado ‘Et tu, Harry?’, ele colocou o milagre de Singapura em um contexto desconcertante. Em vez de harmonizar com as celebrações neorreacionárias da política de imigração assumidamente seletiva da cidade estado, Spandrell pergunta:

Quantos indianos e chineses brilhantes existem, Harry? Certamente eles não são infinitos. O que eles vão fazer em Singapura? Bem, se envolver na loucura do mercado financeiro e do marketing e deprimir sua fertilidade à 0.78, desperdiçando valiosos genes apenas para que os preços das suas propriedades não caiam. Singapura é um triturador de QI.

A acusação é aguda e pode ser generalizada. A modernidade tem um problema de fertilidade. Quando elevada ao zênite da ironia selvagem, a formulação fica assim: No nível demográfico, a modernidade sistematicamente seleciona contra populações modernas. As pessoas que ela prefere, ela consome. Sem exagero grosseiro, essa tendência endógena pode ser vista como um risco existencial para o mundo moderno. Ela ameaça fazer toda a ordem global desabar ao seu redor.

A fim de discutir essa catástrofe implícita, é primeiro necessário falar sobre cidades, o que é uma conversa que já começou. Para expor o problema de maneira crua, mas com confiança: As cidades são sumidouros de populações. O historiador William McNeil explica o básico. A urbanização, desde suas origens, tem tendido implacavelmente a converter crianças de ativos produtivos a objetos de consumo de luxo. Todos os incentivos econômicos arcaicos relacionados à fertilidade são invertidos.

McNeil resume seu argumento em um ensaio online que considera ‘As cidades e suas Consequências’ (Cities and their Consequences):

Uma exposição intensificada a doenças infecciosas era a razão tradicional pela qual as cidades não se reproduziam. […] Mas é o custo de criar filhos em todos os ambientes urbanos, não as doenças, que melhor explica por que as populações urbanas geralmente declinam sem imigrantes das áreas rurais. Onde quer que os adultos saiam para trabalhar em fábricas, lojas e escritórios, e as crianças pequenas não tenham permissão de acompanhá-los, quem cuida dos jovens? Como eles podem ser preparados para um emprego lucrativo? Educação pública e cuidados pré-escolares raramente estão disponíveis nas favelas urbanas, particularmente fora dos países ocidentais, mas ocasionalmente até mesmo dentro deles também. Avós e vizinhos idosos podem, às vezes, fazer o trabalho, mas a coerência da família estendida não é tão predominante nas cidades, e frequentemente tais cuidadores não estão disponíveis. Profissionais de várias descrições devem, então, ser encontrados. Isso torna alto o custo da manutenção de filhos, e a criação que tais profissionais normalmente oferecem raramente se equipara a seus grandes honorários. […] Mesmo as crianças sendo mais caras nas cidades, elas são menos economicamente úteis quando jovens. Existem poucas frutas para serem colhidas, nenhum pequeno animal domesticado para ser arrebanhado. Há uma espera muito maior até que as crianças possam começar a contribuir para a renda da família nos cenários urbanos.

Os custos da educação sozinhos explicam muito disso. As taxas escolares são de longe a tecnologia contraceptiva mais eficaz já concebida. Criar um filho em um ambiente urbano não é nada para o que o precedente rural jamais tenha preparado. Mesmo se pais responsáveis fossem a única motivação em jogo, o efeito compressivo sobre o tamanho familiar já seria extremo. Sob circunstâncias urbanas, torna-se quase uma agressão contra seus próprios filhos ter muitos deles. Mas há muito mais do que isto acontecendo.

O reconhecimento da crise de fertilidade moderna e a ‘extrema direita’ – seja em suas linhagens ‘misógina’ ou ‘racista’ – não são facilmente distinguíveis. O axioma igualitário, como aplicado ao gênero ou à etnia, fica sujeito a uma tensão crítica conforme o tópico é perseguido. Uma teoria geral da direita pós-conservadora seria produtivamente iniciada aqui.

O feminismo foi o primeiro e inevitável alvo. Ele está firmemente correlacionado com o colapso da fertilidade e é algo que a modernidade tende (fortemente) a promover. A expansão das oportunidades sociais femininas para além da criação obrigatória de filhos dificilmente poderia levar a qualquer outro lugar além de uma drástica contração do tamanho familiar. A tendência moderna inexorável à decodificação social – isto é, à produção de uma agência contratual abstrata no lugar de pessoas concretamente determinadas – torna a explosão de tais oportunidades aparentemente incontido. O individualismo fomentado pela vida urbana poderia, para a imaginação contra-factual, ter ficado, de alguma maneira, restrito aos homens, mas enquanto questão de fato histórico real, o abandono dos papéis sociais tradicionais procedeu sem limitação séria, com variação em velocidade, mas sem qualquer indicação de uma direção alternativa. A persona radicalmente decodificada da Internet – opcionalmente anônima, fabricada e auto-definidora – não parece ser mais do que uma extrapolação das normas emergentes da existência urbana. Suposições feministas, pelo menos na forma de sua ‘primeira onda’ liberal, são integrais à cidade moderna.

Lamentações tradicionalistas religiosas a este respeito não são, claro, nada de novo. O cristianismo – especialmente sob inspiração católica – conectou a modernidade à esterilidade por tanto tempo quanto a modernidade foi notada. Uma série de fatores cruciais, contudo, mudaram. Desde os primeiros anos do novo milênio, liberais seculares começaram a notar a conexão entre religiosidade e fertilidade e a expressar uma preocupação crescente com suas consequências político-partidárias. Em um artigo de 2009, Sarah R. Hayford e S. Philip Morgan discutem a transição de uma discussão tradicional sobre o tópico, focada na fertilidade diferencial entre católicos e protestantes, para seu modo contemporâneo, subsequente à convergência das diferenças denominacionais, que agora se mapeia mais estreitamente às afiliações partidárias dos estados vermelhos e azuis. Vale a pena citar seu resumo em sua (quase) totalidade:

Usando dados da National Survey of Family Growth (NSFG) de 2002, mostramos que as mulheres que relatam que a religião é “muito importante” em sua vida cotidiana têm tanto uma fertilidade maior quanto uma fertilidade planejada maior do que aquelas que dizem que a religião é “um pouco importante” ou “não é importante”. Fatores tais como fertilidade indesejada, idade no nascimento ou grau de adiamento da fertilidade parecem não contribuir para os diferenciais da religiosidade na fertilidade. Esta resposta leva a questões mais fundamentais: qual é natureza desta maior “religiosidade”? E por que as mais religiosas querem mais filhos? Mostramos que aquelas que dizem que a religião é mais importante tem atitudes de gênero e familiares mais tradicionais e que essas diferenças de atitude são responsáveis por uma parte substancial do diferencial de fertilidade.

“Os Religiosas Herdarão a Terra?” perguntou Eric Kaufmann em um livro de 2010 com esse nome (“Shall the Religious Inherit the Earth?”). Uma virada peculiar na herança darwiniana começou a trazer a herdabilidade das atitudes religiosas à proeminência e ligá-la (positivamente) à questão da aptidão reprodutiva. Aqueles grupos anteriormente vistos como tendo sido inequivocamente vencidos por uma ciência evolutiva triunfante estavam agora sujeitos a uma irônica – e, da perspectiva progressista, profundamente sinistra – vingança evolutiva. Esta é uma estória que ainda mal começou a se desdobrar.

Um desenvolvimento paralelo, compondo o comprometimento da modernidade cultural com a esterilidade imperativa, tem sido a eflorescência da política de identidade sexual LGBTQXYZ. Após a decisiva vitória progressista na causa do casamento gay, algo como uma Explosão Cambriana em orientações não tradicionais sexuais e de gênero ocorreu, colocando no turbo a pré-existente crítica feminista da sexualidade reprodutiva normativa. Aqui, também, a afinidade com inclinações modernistas profundas é inequívoca, em um processo de especialização introjetada de marcas e nichos. A tendência – frequentemente apoiada enquanto estratégia política explícita – é inverter os termos da marginalização, ao submergir a unidade reprodutiva familiar dentro de um menu hiper-inflado de posições sócio-libidinais. A fertilidade é cada vez mais identificada como uma excentricidade conservadora, alvo legítimo da guerra político-partidária. Uma reação intensa esteve entre os resultados (fornecendo terreno fértil para uma ‘extrema direita’ pós-conciliatória).

Ah, mas tem mais. A transição verdadeiramente grande, implícita no processo da modernidade desde o princípio, é marcada pelo limiar entre urbanização doméstica e global. As grandes cidades sempre foram distintivamente cosmopolitas, mas durante a fase inicial de suas histórias, a maior parte de sua absorção demográfica esteve limitada aos seus próprios sertões étnicos. Urbanização significava, primeiro de tudo, a conversão de populações rurais em moradores de cidades. No mundo em desenvolvimento, ela ainda significa isso. Nas sociedades modernas mais avançadas, contudo, as populações rurais domésticas foram quase inteiramente consumidas, reduzidas a alguma fração negligenciável do total nacional. Depois deste ponto, o processo de substituição populacional, intrínseco ao fenômeno urbano desde seu princípio, ficou inextricavelmente ligado à globalização e aos fluxos migratórios trans-nacionais. Agora – que é realmente agora – as coisas ficam interessantes.

A política, por etimologia profética, é sobre cidades. A inevitabilidade de uma ‘Alt-Right’ emergente na política de massas das sociedades modernas avançadas já é completamente previsível a partir de um entendimento mínimo de como as cidades funcionam. É simples ilusão imaginar que a mera contingência governa aqui, talvez sob a direção de personalidades políticas particulares. Antes, o metabolismo urbano – essencialmente – em uma certa fase de seu desenvolvimento, gera circunstâncias esmagadoramente condutivas à erupção da uma etno-política popular. Cidades são parasitas demográficos. Elas tendem intrinsecamente a uma dinâmica que – para além de um limiar comparativamente definido – não pode falhar em ser percebida como uma política sistemática de substituição étnica.

Há ainda muita esperança de se persuadir a pasta de dentes a volta para seu tubo. Em outras palavras, há uma falha massiva em se apreciar a profundidade e a magnitude dos processos subjacentes à atual crise global. Por exemplo, a linguagem incendiária do ‘genocídio’ conduzido pela migração não irá embora. Ela está fadada, pelo contrário, a se espalhar e se intensificar. A reemergência do tópico da raça, e todos seus associados, está profundamente cozida no bolo modernista. A modernidade comparativa é automaticamente racializada uma vez que o metabolismo global empreste à fertilidade diferencial (urbana/rural) sua especificidade étnica. O que está se desdobrando, entre outras coisas, é a desagregação racial da ‘bomba populacional’, com drástica inevitabilidade. Isto não é um produto de intelectuais, mas inerentemente do processo moderno, e todas as tentativas por parte dos intelectuais de obstruir sua condensação cultural são hubristicamente mal concebidas. “Quem, realmente, está tendo filhos?” É uma espécie de insanidade pensar que esta questão pode ser estrangulada no berço.

Então, qual é a resposta? A Alt-Right tem uma? Se tem, não houve sinal dela ainda. “Queimem as cidades até o chão” foi levantado no Twitter, e sem dúvida em outros lugares, mas não parece ser obviamente prático. Essa solução tem um rico pedigree comunista – especialmente no Leste Asiático – que a Alt-Right provavelmente redescobrirá em algum ponto. Não funcionou nos anos 1970 e teria poucas chances de ter um desempenho sequer um pouco mais convincente hoje.

Conforme a crise escala, pode-se esperar que ela gere uma linha de teorias políticas originais, orientadas à questão: Como fazemos sentido prático e técnico das buscas de soluções sociais em geral? Tal pensamento vai ser necessário. Nossas grandes cidades representam um problema político derradeiro. Eventualmente, algo ficará grato por isso.

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A Armadilha da Atomização

“Mãos para o alto todo mundo que odeia a atomização.” Esse não é um pedido de rendição (pelo menos abertamente), mas meramente uma enquete informal.

Agora tente de forma diferente:

“Mãos para o alto todo mundo que odeia a atomização, mas desta vez sem olhar para o lado.” O processo de decisão – talvez ironicamente – foi um pouco mais lento desta vez? Vale a pena pensar sobre isso. Pode-se esperar que tomar um atalho que ignora o processo social acelere as coisas. Ainda assim, por outro lado – introduzindo o atraso – vem o nebuloso reconhecimento: se você faz a decisão de forma privada, você já é cúmplice. Um reorganização formal menor da questão a transforma de maneira insidiosa. O que você acha da atomização, falando de forma atomística? Vira um loop estranho, ou auto-referencial. A história moderna tem sido assim.

Primeiro, contudo, algumas preliminares terminológicas. Um ‘átomo’ é etimologicamente indistinto de um ‘indivíduo’. Na raiz, as palavras são quase perfeitamente intercambiáveis. Nenhuma delas, em relação à outra, carrega qualquer carga semântica especial. Então, se ‘atomização’ soa como uma metáfora, realmente não é. Não há nada essencialmente derivativo sobre a aplicação sociológica da palavra. Se parece ser um empréstimo da física, isso poderia ser devido a uma série de confusões, mas não a um deslocamento de um terreno original ou natural. Átomos e sociedades são primordialmente indissociáveis, embora estejam em tensão. É isso que ser um animal social – em vez de um completamente ‘eussocial’ (como uma formiga, ou um rato-toupeira) – já indica.

Indivíduos são difíceis de encontrar. Em nenhum lugar eles são simples e confiavelmente dados, menos ainda a si mesmos. Eles exigem trabalho histórico e, em última análise, fabricação, para sequer flutuarem enquanto aproximações funcionais. Um processo está envolvido. É por isto que a palavra ‘atomização’ é menos susceptível a enganações do que ‘átomo’ em si. A individualidade não é nada fora um destino (mas isto é nos anteciparmos).

É difícil saber onde começar. (Os atenienses sentenciaram Sócrates à morte por ser um atomizador social?) O individualismo é estereotipicamente WEIRD (ocidental, educado, industrializado, rico e democrático, na sigla em inglês), e assim tende a levar ao labirinto da etnografia comparativa. Tem estado distribuído de maneira desigual, aproximadamente da mesma maneira que a modernidade. Uma vez que isso já é dizer quase tudo sobre o tópico, merece uma desmontagem.

O trabalho de Walter Russell Mead fornece um a estação de repetição útil. As questões históricas com as quais ele tem se engajado – que se ocupam de nada menos do que o resultado do mundo – estiveram cravadas em um quadro intelectual moldado por uma atenção especial ao cristianismo providencial moderno. Qual foi a fonte do ‘destino manifesto’ que colocou as chaves do domínio global nas mãos de um projeto social progressivamente destilado, protestante, depois puritano, depois ianque? Se não exata ou diretamente ‘Deus’ (ele é sutil demais para isso), é pelo menos algo que a linhagem da Reforma Cristã tem drenado com efetividade única. O protestantismo selou um pacto com o destino histórico – que, por todas as aparências, define uma teleologia global especificamente moderna – ao vencer de maneira consistente. A individualização da consciência – a atomização – foi tornada destino.

Seis anos após Special Providence (2001) veio God and Gold, que reforçou as linhas anglo-americana e capitalista da narrativa. As fronteiras entre a história sócio-econômica e religiosa foram estrategicamente fundidas, da maneira na qual foram pioneiros Max Weber, Werner Sombart e – de maneira mais crítica – numerosos pensadores católicos que identificaram e continuam a identificar a essência da modernidade como um poder religioso hostil. Eugene Michael Jones é Walter Russell Mead do outro lado do espelho. A estória que cada um está contando se transforma sem distorção significativa na do outro, uma vez que seja resfriada abaixo do limiar da agitação moral. O que quer que tenha acontecido com o cristianismo ocidental na Renascença soltou o capitalismo sobre o mundo.

É possível ser ainda mais cru sem sacrificar muita realidade. Quando consideradas enquanto designações rígidas, Atomização, Protestantismo, Capitalismo e Modernidade nomeiam exatamente a mesma coisa. No domínio da política pública (e para além dela), privatização endereça o mesmo diretório.

Embora qualquer variante em particular do Protestantismo implícito ou explícito tenha suas características teológicas (ou ateológicas) distintivas, assim como qualquer estágio da industrialização capitalista tem suas características concretas, estas servem como distrações mais do que como pontos de apoio no quadro mais amplo. O único quadro verdadeiramente mais amplo é a cisão. A Reforma não foi apenas uma quebra, mas, de maneira ainda mais importante, uma normalização da quebra, um protocolo inicialmente informal, mas cada vez mais rigorizado, de desintegração social. A solução derradeira que ela ofereceu em relação a todas as questões sociais não era o debate, mas a saída. A fissão crônica foi instalada no âmago do processo histórico. De maneira fundamental, é isso que a atomização significa.

O Protestantismo – o Protestantismo Real Abstrato – que está cada vez mais propenso a se identificar como pós-cristão, pós-teísta e pós-Tudo O Mais, é um máquina auto-propulsora para a desintegração social incompreensivelmente prolongada, e todo mundo sabe disso. A atomização se tornou uma agência autônoma e inumana ou, pelo menos, algo cada vez mais autônomo e cada vez mais inumano. Ela pode apenas liquidar tudo com o que você jamais se preocupou, por sua própria natureza, então – claro – ninguém gosta dela. O catolicismo, o socialismo e o nacionalismo buscaram, em sucessão, coalização ou competição mútua, reunir os estilhaços da comunidade violada contra ela. O longo fio de derrotas que se seguiu tem sido uma rica fonte de mitologia cultural e política. Já que não há realmente nenhuma escolha além da resistência, a batalha sempre foi retomada, mas sem qualquer sinal sério de alguma reversão da fortuna.

Sob as atuais condições, a atomização serve – de maneira única – como um tubo inexaurível de cola reacionária. Uma profunda aversão ao processo é o único denominador comum de nossa oposição cultural contemporânea, que se estende do catolicismo tradicionalista ao etno-nacionalismo da alt-right. “Qualquer que seja nossa cola preferida, não podemos pelo menos concordar que as coisas ficaram descoladas – e estão cada vez menos coladas?” Isso parece bem longe de uma aspiração desarrazoada. Afinal, se a construção de uma coalização é a meta, o que – imaginavelmente – poderia fornecer uma bandeira melhor do que o próprio princípio de integridade social, mesmo se este for invocado pura e negativamente, por meio de uma anatematização dirigida a seu inimigo histórico fatal? A atomização, neste aspecto, reúne as pessoas, pelo menos conversacionalmente, embora isto funcione melhor quando a conversa não fica muito profunda.

Quase ninguém quer ser atomizado (eles dizem). Talvez eles tenham lido a novela de 1998 de Michel Houellebecq Atomised (ou Elementary Particles), e acenaram juntos com a cabeça. Como seria possível não o fazer? Se fosse aí que acabasse, seria difícil de ver o problema, ou como jamais veio a haver um problema, mas não acaba aí, nem em nenhum lugar próximo, porque a atomização faz zombaria das palavras. A atomização nunca foi boa em festas, sem surpresas. Ela é impopular ao ponto de uma essência. Tem aquela coisa puritana, e a coisa da Ayn Rand, e a coisa dos nerds, e o gatilho de piadas sobre Aspergers – se isso realmente for uma coisa separada – e, sem dúvidas, inúmeras deficiências sociais mais, cada uma delas por si só desqualificando, se receber um ‘curtir’ em algum meio coletivo for a meta, porque ninguém curte ela, como já ouvimos (por meio milênio já). Mas o que ouvimos, e o que vimos, foram duas coisas bem diferentes.

A atomização nunca tentou se vender. Em vez disso, ela veio de graça, com todo o resto que foi vendido. Ela era a implicação formal da dissidência, primeiro de tudo, do ceticismo metódico, ou investigação crítica, que pressupunha uma suspensão de autoridade que se provou irreversível e, depois, – de maneira igualmente implícita originalmente – da forma da relação contratual e de toda inovação subsequente no âmbito da negociação privada (haveriam muitas, e mal começamos). “Então, o que você acha (ou quer)?” Isso foi o bastante. Nenhum entusiasmo articulado pela atomização jamais foi necessário. A feitiçaria da preferência revelada tem feito todo o trabalho e ali, também, mal começamos.

A atomização pode ter poucos amigos, mas não têm qualquer escassez de aliados formidáveis. Mesmo quando as pessoas estão prontamente convencidas de que a atomização é indesejável, elas querem, em última instância, decidir por si mesmas, e tanto mais quanto mais pensam que isso importa. Na medida em que a atomização se tornou um verdadeiro horror, ela compele uma relação íntima cognitiva e moral consigo mesma. Ninguém que vislumbre o que ela é pode delegar as conclusões relevantes para qualquer autoridade superior. Assim, ela ganha. Todo católico de seriedade intelectual tem visto isto por séculos. O socialistas também, por décadas. O momento de revelação etno-nacionalista não pode ser em muito adiado. Sob condições modernas, toda comunidade moral autoritativa é mantida refém da decisão privada, mesmo quando é aparentemente afirmada e especialmente quando tal afirmação é asseverada de maneira mais veemente. (Os elementos mais excitáveis dentro do mundo do Islã vêm isso chegando e estão conspicuamente infelizes com o fato.)

Substancialmente, mesmo que apenas especulativamente, a liberdade de consciência poderia tender à coletividade, mas, formalmente, ela fixa o individualismo cada vez mais firmemente. Ela desafia a autoridade da comunidade no mesmo momento em que oferece um endosso explícito, ao tornar a comunidade um questão urgente de decisão privada e – no pico mesmo de sua alegada sacralidade – de compras. Os tradicionalistas religiosos vêem a si mesmos espelhados no mercado de comidas integrais e estão horrorizados, quando não sombriamente entretidos. “Conservadores da Birkenstock” foi a auto-identificação sinistramente irônica de Rod Dreher. O anti-consumismo se torna uma preferência do consumidor, a causa pública, um entusiasmo privado. A intensificação do sentimento coletivista apenas estreita a armadilha do macaco. Fica pior.

A história americana – na fronteira global da atomização – está densamente salpicada de comunidades eletivas. Das comunidades religiosas puritanas do começo do período colonial, passando pelas comunas ‘hippies’ do século passado, e além, o experimentos de vida comunal sob os auspícios da consciência privada radicalizada buscaram melhorar a atomização da maneira mais consistente com seu destino histórico. Tais experimentos confiantemente falham, o que ajuda a acelerar o processo, mas isso não é o principal. O que mais importa sobre todas essas co-ops, comunas e cultos é a opção contratual semi-formal que as enquadram. Desde o momento de sua iniciação – ou até mesmo de sua concepção – elas confirmam uma atomização soberana e sua reconstrução do mundo social sobre o modelo de um menu. A muito discutida ‘Opção Beneditina’ de Dreher não é nenhuma exceção a isto. Não há retirada do curso da modernidade, ‘de volta’ à comunidade, que não reforce o padrão de dissidência, cisma e saída a partir do qual a atomização continuamente reabastecesse seu impulso. Conforme a consciência privada se dirige à escapada da privatização da consciência, ela regenera aquilo de que foge, cada vez mais fundo dentro de si. A individuação, considerada de maneira impessoal, gosta quando você corre.

Como é bem entendido, ‘átomos’ não são átomos, e ‘elementos’ não são elementos. Partículas elementares – se sequer elas existirem – estão pelo menos dois níveis (profundos) mais abaixo. Os indivíduos humanos certamente não são menos decomponíveis. A ‘sociedade da mente’ de Marvin Minsky é apenas uma indicação vívida de como a sociologia história poderia se inclinar para dentro do âmbito atômico. Aceleradores de partículas demonstram que estilhaçar entidades até as menores peças alcançáveis é um problema tecnológico. O mesmo se mantém no âmbito social, embora, naturalmente, com tecnologias muito diferentes.

Descartar indivíduos como fingimentos metafísicos, portanto, seria a mais fútil das diversões. A atomização não tem qualquer metafísica que a restrinja, seja na física de partículas, ou no processo dinâmico antropológico e socio-histórico. Se ela promete, às vez, lhe dizer quem você realmente é, tais sussurros eventualmente pararão, ou virão a zombar de si mesmos, ou serão simplesmente esquecidos. O protestantismo, tem que ser lembrado, é apenas mascarado, momentaneamente, como uma religião. O que está por debaixo duradouramente é uma maneira de quebrar coisas.

Depois de tanto já ter sido dilacerado, com tantas monstruosidades geradas, é sem dúvida exaustivo ouvir que, embora quase tudo ainda tenha que ser construído, não menos ainda aguarde ser quebrado. A atomização já foi longe demais, somos incessantemente informados. Se este for o caso, o futuro será difícil. Não pode haver qualquer dúvida realista de que ele será extremamente dividido. O dínamo que guia as coisas tende, de maneira irresistível, nessa direção. Tente se separar, e ele gira mais rápido.

“Mãos para o alto todo mundo que odeia a atomização.” Não, isso não é mais uma pergunta. Seria um pedido de rendição, se a rendição importasse, mas não importa, como vimos. Continue lutando contra ela, por todos os meios. Ela gosta disso.

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Uma Introdução Rápida-e-Suja ao Aceleracionismo

Qualquer um que esteja tentando resolver o que pensa sobre o aceleracionismo, é melhor fazê-lo rapidamente. Esta é a natureza da coisa. Já estava apanhado de tendências pareciam rápidas demais para se acompanhar quando começou a se tornar auto-consciente, décadas atrás. Ganhou bastante velocidade desde então.

O aceleracionismo é velho o suficiente para ter chegado em ondas, o que seria dizer, insistente ou recorrentemente, e cada vez o desafio é mais urgente. Entre suas previsões está a expectativa de que você será lento demais para lidar com ele de maneira coerente. Ainda assim, se você tatear as questões que ele coloca – uma vez que está apressado – você perde, talvez de maneira bem séria. É difícil. (Para nossos propósitos aqui, “você” está como substituto portador das “opiniões da humanidade”.)

A pressão do tempo, por sua própria natureza, é algo difícil de se pensar. Tipicamente, embora a oportunidade para deliberação não é necessariamente presumida, ela é pelo menos – com esmagadora probabilidade – confundida com uma constante histórica, em vez de uma variável. Se já houve tempo para pensar, pensamos, ainda há e sempre haverá. A probabilidade definitiva de que a atribuição de tempo à tomada de decisão está sofrendo uma compressão sistemática permanece uma consideração negligenciada, mesmo entre aqueles que estão prestando uma atenção explícita e excepcional à crescente rapidez da mudança.

Em termos filosóficos, o problema profundo da aceleração é transcendental. Ele descreve um horizonte absoluto – e que está se fechando. Pensar toma tempo, e o aceleracionismo sugere que estamos ficando sem tempo para pensar sobre isso de maneira completa, se já não estivermos. Nenhum dilema contemporâneo está sendo entretido de maneira realista até que também seja reconhecido que a oportunidade para fazê-lo está colapsando rapidamente.

Tem-se que chegar à suspeita de que, se uma conversa pública sobre a aceleração está começando, é apenas a tempo de ser tarde demais. A profunda crise institucional que torna o tópico ‘quente’ tem, em seu cerne, uma implosão da capacidade social de tomada de decisão. Fazer qualquer coisa, nesse ponto, demoraria tempo demais. Então, em vez disso, os eventos cada vez mais apenas acontecem. Eles parecem cada vez mais fora de controle, em uma medida até mesmo traumática. Já que o fenômeno básico parece ser uma falha dos freios, o aceleracionismo é apanhado novamente.

O aceleracionismo liga a implosão do espaço de decisão à explosão do mundo – isto é, à modernidade. É importante, portanto, notar que a oposição conceitual entre implosão e explosão não faz nada para impedir seu acoplamento real (mecânico). Armas termonucleares fornecem os exemplos mais vividamente iluminantes. Uma bomba H emprega uma bomba A como gatilho. Uma reação de fissão desencadeia uma reação de fusão. A massa de fusão é esmagada até a ignição por um processo de explosão. (A modernidade é uma explosão.)

Isto já é falar sobre a cibernética, que também retorna insistentemente, em ondas. Ela se amplifica até um uivo e depois se dissipa na balbuciação sem sentido da moda, até que a próxima onda de explosão chegue.

Para o aceleracionismo, a lição crucial foi esta: Um circuito de feedback negativo – tal como um “governador centrífugo” de uma máquina a vapor ou um termostato – funciona para manter algum estado de um sistema no mesmo lugar. Seu produto, na linguagem formulada pelos ciberneticistas filosóficos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, é territorialização. O feedback negativo estabiliza um processo, ao corrigir a deriva e, assim, inibir o afastamento para além de um alcance limitado. A dinâmica é colocada a serviço da fixação – um estase de nível superior, ou estado. Todos os modelos de equilíbrio de sistemas e processos complexos são assim. Para capturar a tendência contrária, caracterizada por uma errância, fuga ou escapada auto-reforçadora, D&G cunharam o termo deselegante, mas influente, desterritorialização. A desterritorialização é a única coisa sobre a qual o aceleracionismo realmente sempre falou.

Um termos sócio-históricos, a linha de desterritorialização corresponde a um capitalismo não compensado. O esquema básico – e, claro, em algum grau elevado e altamente consequente, efetivamente instalado – é um circuito de feedback positivo, dentro do qual a comercialização e a industrialização mutuamente excitam uma à outra em um processo descontrolado, a partir do qual a modernidade extrai seu gradiente. Karl Marx e Friedrich Nietzsche estavam entre aqueles que capturaram aspectos importantes da tendência. Conforme o circuito é incrementalmente fechado, ou intensificado, ele exibe uma autonomia, ou automação, cada vez maior. Ele se torna mais firmemente auto-produtivo (o que é apenas o que ‘feedback positivo’ já diz). Uma vez que ele não apela a nada além de si mesmo, ele é inerentemente niilista. Ele não tem qualquer significado concebível além da auto-amplificação. Ele cresce a fim de crescer. A humanidade é seu hospedeiro temporário, não seu mestre. Seu único propósito é si mesmo.

“Acelerar o processo”, recomendaram Deleuze & Guattari em seu Anti-Édipo, de 1972, citando Nietzsche para reativar Marx. Embora fosse levar outras quatro décadas até que o “aceleracionismo” fosse nomeado como tal, de maneira crítica por Benjamin Noys, ele já estava ali, em sua totalidade. A passagem relevante é digna de ser repetida por completo (como seria, repetidamente, em todas as discussões aceleracionistas subsequentes):

… qual é o caminho revolucionário? Existe um? – Retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselha que os países do Terceiro Mundo façam, em um curioso renascimento da “solução econômica” fascista? Ou poderia ser ir na direção oposta? Ir ainda além, isto é, no movimento do mercado, de decodificação e desterritorialização? Pois talvez os fluxos não estejam ainda desterritorializados o suficiente, nem decodificados o suficiente, do ponto de vista de uma teoria e de uma prática de um caráter altamente esquizofrênico. Não se retirar do processo, mas ir além, “acelerar o processo”, como Nietzsche colocou: nesta questão, a verdade é que não vimos nada ainda.

O ponto de uma análise do capitalismo, ou do niilismo, é fazer mais disso. O processo não deve ser criticado. O processo é a crítica, retroalimentando a si mesmo, conforme se escala. O único caminho adiante é através, o que significa mais adentro.

Marx tem seu próprio ‘fragmento aceleracionista’, que antecipa a passagem do Anti-Édipo de maneira notável. Ele diz, no discurso de 1848 ‘Da Questão do Livre Comércio’:

…em geral, o sistema protetor de nossos dias é conservador, ao passo que o sistema de livre comércio é destrutivo. Ele quebra antigas nacionalidades e empurra o antagonismo entre o proletariado e a burguesia a um ponto extremo. Em uma palavra, o sistema de livre comércio acelera a revolução social. É neste sentido revolucionário apenas, senhores, que eu voto a favor do livre comércio.

Nesta matriz aceleracionista germinal, não há distinção a ser feita entre a destruição do capitalismo e sua intensificação. A auto-destruição do capitalismo é o que o capitalismo é. “Destruição criativa” é o todo dele, apenas ao lado de seu retardamento, compensações parciais ou inibições. O capital se revoluciona mais completamente do que qualquer ‘revolução’ extrínseca possivelmente poderia. Se a história subsequente não justificou esse ponto para além de qualquer questão, ela pelo menos tem simulado tal justificação, em um grau enlouquecedor.

Em 2013, Nick Srnicek e Alex Williams buscaram resolver esta ambivalência intolerável – até mesmo ‘esquizofrênica’ – em seu ‘Manifesto por uma Política Aceleracionista’, que visava precipitar um ‘Aceleracionismo de esquerda’ especificamente anti-capitalista, claramente demarcado contra sua sombra ‘Aceleracionista de direita’ abominavelmente pró-capitalista. Este projeto – previsivelmente – teve mais sucesso em reanimar a questão aceleracionista do que em purificá-la de qualquer maneira sustentável. Foi apenas através de uma introdução de uma distinção totalmente artificial entre capitalismo e aceleração tecnológica moderna que suas linhas de fronteira puderam ser sequer traçadas. O chamado implícito era por um novo Leninismo, sem a NEP (e com os experimentos tecno-gerenciais utópicos do comunismo chileno como base para ilustração).

O capital, em sua definição derradeira, não é nada além do fator social acelerativo abstrato. Seu esquema cibernético positivo o exaure. A fuga consome sua identidade. Qualquer outra determinação é removida como um acidente, em algum estágio de seu processo de intensificação. Uma vez que qualquer coisa capaz de alimentar a aceleração sócio-histórica necessariamente, ou por essência, será capital, o prospecto de qualquer ‘Aceleracionismo’ inequivocamente ‘de esquerda’ ganhar um ímpeto sério pode ser confiantemente descartado. O aceleracionismo é simplesmente a auto-consciência do capitalismo, que mal começou. (“Não vimos nada ainda.”)

No momento em que escrevo, o Aceleracionismo de esquerda parece ter se desconstruído de volta à política socialista tradicional, e a tocha aceleracionista foi passada para uma nova geração de brilhantes jovens pensadores que avançam um ‘Aceleracionismo Incondicional’ (nem R/Acc., nem L/Acc., mas U/Acc.). Suas identidades online – se não, de qualquer maneira facilmente extricável, suas ideias – podem ser pesquisadas através da peculiar hash-tag nas mídias sociais, #Rhetttwitter.

Conforme blockchains, logística com drones, nanotecnologia, computação quântica, genômica computacional e realidade virtual inundam, encharcadas em densidades cada vez maiores de inteligência artificial, o aceleracionismo não vai a lugar algum, a não ser mais fundo em si mesmo. Ser apressado pelo fenômeno, ao ponto de paralisia institucional terminal, é o fenômeno. Naturalmente – o que seria dizer, de maneira completamente inevitável – a espécie humana definirá este evento terrestre derradeiro como um problem. Vê-lo já é dizer: Temos que fazer alguma coisa. Ao quê o aceleracionismo só pode responder: Você finalmente está dizendo isso agora? Talvez devêssemos começar? Em suas variantes mais frias, que são aquelas que são vitoriosas, ele tende a gargalhar.

Nota:

O #Accelerate: The Accelerationist Reader da Urbanomic continua sendo de longe a introdução mais abrangente ao aceleracionismo. O livro foi publicado em 2014, contudo, e muito aconteceu desde então.

O artigo da Wikipédia sobre ‘Accelerationism’ é curto, mas de qualidade excepcionalmente alta.

Para o ‘Manifesto por uma Política Aceleracionista’ de Srnicek e Williams veja isto.

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