Exumação

Eles o haviam enterrado fundo, tremendo o tempo todo, espalhando seus encantamentos de proteção sobre o túmulo amaldiçoado, como se para sepultar suas memórias ali, enterrando tudo que haviam sabido no barro infinitamente indulgente. O que eles imploravam silenciosamente para esquecer, acima de tudo, era profecia de que, quando as estrelas estivessem certas, ele – aquilo – retornaria para alguma conclusão horrível. O tempo passou, na medida exata que sempre fora necessária, até que a noite sem lua veio, sem anúncio e sem o agito da menor das brisas, quando as estrelas estavam – em fato gelado e brilhante – perfeita e impiedosamente certas

Original.

Horrorizado

Há um post sobre o racismo extremo de H. P. Lovecraft a caminho e, dada a abundância de material estimulante sobre o tópico, um tira-gosto menor é irresistível. Este] ensaio altamente representativo de Nicole Cushing serve como oportunidade. Ela escreve:

Abordar este assunto também é difícil porque ele tem que ser tratado com algum nuance (o que é difícil de conseguir em uma discussão sobre um tópico uma carga emocional tão justificadamente grande quanto o racismo americano). Seria fácil demais apontar para o racismo de Lovecraft (e para algumas de suas outras falhas enquanto autor) e descartá-lo como um idiota indistinto que não merecia nada melhor do que ser publicado em pulps. Eu não vou fazer isso aqui. Minha posição é de que Lovecraft fez uma contribuição importante para o horror e para a ficção científica ao focar (de uma maneira persistente e convincentemente imaginativa) no terror induzido pela revelação da não-significação humana no cosmos. […] Lovecraft teve uma influência significativa na ficção de horror (em particular) durante muitos anos, uma influência que transcende seu racismo. …Tudo isso é apenas uma maneira verbosa de explicar que o racismo de Lovecraft não nega suas realizações.

Mas suas realizações não negam seu racismo. (Entre, dissonância cognitiva).

Entre os aspectos mais fascinantes deste comentário é sua flagrante desorientação, uma vez que – claro – o fenômeno indicado não tem absolutamente nada a ver com dissonância cognitiva. Há aqui um encontro com uma espécie anormal de gênio literário, associada com uma verdade metafísica profunda, o que, ao mesmo tempo, – e por razões inextricavelmente emaranhadas – desencadeia uma reação de pânico moral, que se inclina para uma repulsa somática profunda. Em outras palavras, e talvez até mesmo bastante simplesmente, o que está sendo relatado por Nicole Cushing é – horror.

ADICIONADO: Isto me divertiu morbidamente:

“Houve essa janela de oportunidade”, continua [o boateiro sobre o Necronomicon, Peter Levenda], revisando a ressurgência ocultista nos anos 1970, quando “queríamos mostrar que isso não era uma coisa assustadora. Poderia ser poderosa, poderia alterar sua mente, poderia mudar sua vida. Mas não era perigoso, não ia te matar. E era isso que estávamos tentando promover.”

Eu recentemente visitei o antigo local do The Magickal Childe. Herman Slater morreu de AIDS em 1992…

ADICIONADO: Nicole Cushing (em sua própria seção de comentários: “Em posts nos quais “a palavra com n” apareceria, eu editei para ser ‘N—-r’ ou algum outro arranjo similar. Dessa maneira, os leitores devem ser capazes de entender a essência do que o comentador está se referindo sem ter que olhar para a palavra em si”.  – Por que não simplesmente deixar como “Neorreação”? – não pode ser tão aterrorizante assim.

Original.

Horror Abstrato (Parte 1)

Quando concebido rigorosamente enquanto ofício literário e cinemático, o horror é indistinguível de uma tarefa singular: fazer um objeto do desconhecido, enquanto desconhecido. Apenas nestes termos é que suas realizações essenciais podem ser estimadas.

Isolar o propósito abstrato do horror, portanto, não requer um operação filosófica suplementar. O horror define a si mesmo através de um pacto com a abstração, de tamanha compulsão primordial que a metafísica disciplinada pode apenas lutar, tardiamente, para recapturá-lo. Alguma ‘coisa’ sublime – abstraída radicalmente do que ela é para nós – pertence ao horror muito antes da razão dar início à sua busca. O horror encontra primeiro ‘aquilo’ que a filosofia eventualmente busca saber.

O alto modernismo na literatura foi bem menos enfeitiçado pelo projeto da abstração do que seu desenvolvimento contemporâneos nas artes visuais, ou mesmo na música. Reciprocamente, a abstração na literatura, como exemplificada mais marcadamente pelas extremidades da escuridão miltoniana – embora possivelmente ‘moderna’ – está dessincronizada por séculos do clímax da experimentação modernista. A abstração no horror literário coincidiu com, e mesmo antecipou, as explorações filosóficas que o cânone estético modernista foi capaz de pressupor. O horror – sob outros nomes – excedeu o zênite modernista antecipadamente e com uma orientação histórica invertida que remonta à Noite Antiga da religião de mistério grega, adentrando uma antiguidade abismal (e abismos arcaicos). Sua abstração é uma escavação que progride implacavelmente para dentro do passado profundo.

A destinação do horror não pode ser exatamente um ‘lugar’ – mas não é impreciso, pelo menos provisoriamente, pensar em tais termos. É para dentro, e para além, do quadro estruturante da existência que a inteligência fobotrópica é atraída. Lovecraft descreve bem o impulso:

Eu escolho as estória esquisitas porque elas se adequam melhor às minhas inclinações – um dos mais desejos mais fortes e mais persistentes sendo alcançar, momentaneamente, a ilusão de alguma estranha suspensão ou violação das irritantes limitações de tempo, espaço e lei natural que para sempre nos aprisionam e frustram nossa curiosidade sobre os espaços cósmicos infinitos para além do raio de nossa visão e análise. Essas estórias frequentemente enfatizam o elemento do horror, porque o medo é nossa mais profunda e mais forte emoção e a que melhor se empresta à criação de ilusões desafiadoras da natureza. O horror e o desconhecido, ou o estranho, estão sempre intimamente conectados, de modo que é difícil criar um quadro convincente de lei natural estilhaçada ou de alienação cósmica ou de “exterioridade” sem colocar ênfase na emoção do medo. A razão pela qual o tempo desempenha uma grande parte em tantos dos meus contos é que este elemento avulta-se em minha mente como a coisa mais profundamente dramática e sombriamente terrível no universo. Conflito com o tempo me parece o tema mais potente e frutífero em toda a expressão humana.

Um monstro, em comparação, não pode ser mais do que um guia – a menos que se funda (como Yog Sothoth) no tecido extracósmico envolvente, como uma concentração super-senciente de portas. Podemos, não obstante, nos aproveitar desses guias, cuja monstruosidade – ‘propriamente entendida’ – diz muito sobre o caminho do inominável.

O filme O Segredo do Abismo (1989) de James Cameron não está atmosfericamente associado ao nosso tópico, mas ele se recomenda a esta investigação não apenas através de seu título, mas também em um único momento crítico de seu roteiro. Quando os outros (cuja natureza positiva não precisa nos atrasar aqui) são primeiro registrados por certas indicações técnicas, eles são identificados apenas como “algo que não nós”. Neste aspecto, eles alcançam o estágio inicial da monstruosidade, que é a ‘simples’ além-idez, considerada enquanto característica principal.

O escritor de sinister-punk China Miéville, cujos projetos de horror tipicamente falham no teste de abstração, é convincente sobre esse ponto. Monstros com tentáculos se emprestam à divindade horrorífica precisamente porque eles não são, de nenhuma forma que seja, ‘nós’ – sublimados para além do prospecto de reconhecimento antropomórfico por sua ‘Cefalópodidade’. Em comparação com a figura humanoide do ser inteligente, eles exercem um força repulsiva preliminar, o que já é um incremento de abstração. Formas insectoides (tais como o lendário Louva-a-Deus Alexiano) tem um papel tradicional comparável.

Seria uma débil monstruosidade, contudo, a que viesse a repousar sobre uma negação tão elementar. As formas intrinsecamente fervilhantes e plásticas de cefalópodes e de seres insectoides incompreensivelmente complexos já avançam a um estágio adicional de abstração corpórea, onde uma outra forma é suplantada por um outro à forma e uma alienação intensificada da apreensão.

O cinema, devido – paradoxalmente – a seus laços estritos de concretude sensível, fornece exemplos especialmente vívidos dessa monstruosidade elevada. O comprometimento do filme com a tarefa do horror provoca ainda mais subdivisão, ao longo de um espectro de amorfismo. A escapada inicial para fora da forma é representada por um processo de mutação imprevisível, tal como aquela retratada graficamente em A Mosca (1986) de David Cronenberg, que subverte, em sequência, cada momento de aquisição perceptiva junto com seu objeto morfológico corolário. A monstruosidade é um deslize contínuo, ou processo de devir, que não se parece com nada.

Para além do mutante, há um amorfismo superior, que pertence ao monstruo que não tem nenhuma forma intrínseca própria, ou sequer uma trajetória morfológica inerente. Este horror metamorfo ocupa o planalto da monstruosidade cinemática, como exemplificado por três criaturas que podem ser produtivamente discutidas em concerto: The Thing (1982; o Alien (da franquia) e o Exterminador (da franquia).

Estes monstros compartilham de uma abstração positiva extrema. Em cada caso, eles emprestam a forma de sua presa, de modo que o que se vê – o que o cinema mostra – é apenas como eles caçam. Conforme as franquia de Alien e do Exterminador do Futuro evoluíram, este traço abstrato básico se tornou cada vez mais explícito, passando por uma consolidação narrativa e visual. O primeiro Exterminador já havia sido construído para imitar a forma humana, mas, no segundo episódio da série (Cameron, 1991), o T-1000 era um predador robótico de metal líquido com um corpo de fluxo estabilizado, submergindo inteiramente a forma na função militar. Similarmente, o corpo mutável do Alien, ao longo do curso da franquia, alcançou um estado cada vez mais elevado de variabilidade morfológica, conforme se fundia com seu ciclo predatório. (Que a “Thing” não tinha nenhuma aparência separável daquela de sua presa era ‘evidente’ desde o princípio.)

Depois que o T-1000 é congelado e estilhaçado, ele gradualmente derrete e começa e se recombinar em si mesmo, fluindo de volta de seu estado de desintegração. Esta onda convergente não é a ‘forma’ da própria Skynet? O que não pode ser visto é tornado perceptível, através do horror gráfico. (Agora ‘vemos’ que sistemas tecnocomerciais, cujo ser catalático é uma onda convergente estritamente análoga, pertencem ao mundo do horror e aguardam seu cineastas.)

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Nada para ver aqui.

[uma reanimação do Materialismo Shoggótico, a seguir]

Original.

Antecâmara do Horror II

Algumas passagens de definição de cena da resenha Supernatural Horror in Literature de H. P. Lovecraft:

A mais antiga e mais forte emoção da humanidade é o medo, e a mais antiga e mais forte forma de medo é o medo do desconhecido. Estes fatos poucos psicólogos disputarão, e sua verdade admitida deve estabelecer para todo o tempo a genuinidade e dignidade do conto esquisitamente horrível enquanto forma literária.

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O apelo do espectralmente macabro é geralmente restrito porque ele demanda do leitor um certo grau de imaginação e uma capacidade de distanciamento da vida cotidiana. Relativamente poucos são livres o suficiente do feitiço da rotina diária para responder às batidas do lado de fora…

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Uma vez que lembramos da dor e da ameaça de morte mais vividamente do que do prazer e uma vez que nossos sentimentos em relação aos aspectos benéficos do desconhecido foram, desde o princípio, capturados e formalizados pelos rituais religiosos convencionais, ficou para o lote do lado mais sombrio e mais maléfico do mistério cósmico figurar de maneira principal em nosso folclore popular sobrenatural. Esta tendência, também, é naturalmente realçada pelo fato de que a incerteza e o perigo estão sempre intimamente aliados; tornando, assim, qualquer tipo de mundo desconhecido um mundo de perigo e possibilidades malignas. Quando, a este sentido de medo e maleficência, o inevitável fascínio do maravilhamento e da curiosidade é acrescentado, nasce um corpo composto de aguda emoção e provocação imaginativa, cuja vitalidade deve, por necessidade, durar tanto quanto a própria raça humana. As crianças sempre terão medo do escuro, e homens com mentes sensíveis ao impulso hereditário sempre estremecerão com o pensamento de mundos ocultos e insondáveis, de vida estranha, que podem pulsar nos golfos além das estrelas ou se imprimir horrendamente sobre o nosso próprio globo, em dimensões profanas que apenas os mortos e os lunáticos podem vislumbrar.

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O verdadeiro conto esquisito tem algo mais do que um assassinato secreto, ossos sangrentos ou uma forma envolta em lençóis tinindo correntes, de acordo com a regra. Uma certa atmosfera de pavor ofegante e inexplicável de forças exteriores e desconhecidas deve estar presente; e deve haver uma pista, expressa com uma seriedade e portentosidade que se torna seu assunto, daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os ataques do caos e dos demônios do espaço insondável.

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O único teste do realmente esquisito é simplesmente este – se foi ou não excitado, no leitor, um profundo sentido de temor e contato com esferas e poderes desconhecidos; uma sutil atitude de escuta aterrorizada, como se fosse pelo bater de asas negras ou pelo arranhar de formas e entidades exteriores sobre a orla mais remota do universo conhecido.

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Antes de Poe, a maior parte dos escritores esquisitos houvera trabalhado no escuro; sem um entendimento da base psicológica do apelo do horror e prejudicados por mais ou menos da conformidade a certas convenções literárias vazias, tais como o final feliz, a virtude recompensada e, em geral, um didatismo moral oco, aceitação de padrões e valores populares e um esforço do autor de intrometer suas próprias emoções na estória e tomar lados com os partidários das ideias artificiais da maioria. Poe, por outro lado, percebeu a impessoalidade essencial do real artista; e sabia que a função da ficção criativa é meramente expressar e interpretar eventos e sensações como elas são, independente de ao que elas tendem ou do que elas provam – boas ou más, atraentes ou repulsivas, estimulantes ou depressivas – com o autor sempre agindo como um cronista vívido e distanciado, em vez de como um professor, simpatizador ou vendedor de opinião. Ele via claramente que todas as fases da vida e do pensamento são igualmente elegíveis como assunto para o artista e, sendo inclinado por temperamento à estranheza e à melancolia, decidiu ser o interpretador daquele poderoso sentimento e frequentes acontecimentos que tratam da dor ao invés do prazer, da decadência ao invés do crescimento, do terror ao invés da tranquilidade e que são fundamentalmente adversos ou indiferentes aos gostos e sentimentos extrínsecos tradicionais da humanidade e à saúde, sanidade e bem-estar expansivo normal da espécie.

Os espectros de Poe, desta forma, adquiriram uma malignidade convincente, não possuída por nenhum de seus predecessores, e estabeleceram um novo padrão de realismo nos anais do horror literário.

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O público para quem Poe escrevia, embora tivesse grosseiramente pouco interesse em sua arte, não estava de forma alguma pouco acostumado com os horrores com os quais ele lidava. A América, além de herdar o folclore sombrio usual da Europa, tinha um fundo adicional de associações esquisitas no qual se basear… dos agudos interesses espirituais e teológicos dos primeiros colonos, mais a natureza estranha e proibitiva da cena na qual eles foram mergulhados. As vastas e sombrias florestas virgens em cuja penumbra perpétua todos os terrores poderiam bem espreitar; as hordas de índios acobreados cujas fisionomias estranhas e saturninas e costumes violentos insinuavam fortemente traços de origem infernal; a rédea livre, dada sob a influência da teocracia puritana, a todo tipo de noções a respeito da relação do homem com o Deus severo e vingativo dos calvinistas e com o adversário sulfuroso desse Deus, sobre quem tanto se trovejava nos púlpitos a cada domingo; a a mórbida introspecção desenvolvida por uma vida isolada no interior, desprovida dos divertimentos normais e do humor recreativo, assediada pelas ordens de auto-exame teológico, afinada para a repressão emocional antinatural e que formava, sobretudo, uma mera luta severa pela sobrevivência – todas estas coisas conspiravam para produzir um ambiente no qual os sussurros negros de anciãs sinistras eram ouvidos bem além do canto das chaminés, e no qual contos de bruxaria e monstruosidades secretas inacreditáveis perduraram muito depois dos dias de pavor do pesadelo de Salem.

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Dos criadores vivos de medo cósmico elevado a seu tom mais artístico, poucos se quaisquer podem esperar se igualar ao versátil Arthur Machen; autor de uma dúzia de contos, longos e curtos, nos quais os elementos de horror oculto e susto chocante atingem uma sustância e uma agudeza realista quase incomparáveis. …Dos contos de horror do Sr. Machen, o mais famoso talvez seja “The Great God Pan” (1894), que conta sobre um experimento singular e terrível e suas consequências. …O melodrama está inegavelmente presente, a coincidência é estendida a uma distância que parece absurda sob análise; mas, na bruxaria maligna do conto como um todo, essas ninharias são esquecidas, e o leitor sensível chega ao fim com apenas um arrepio apreciativo e uma tendência a repetir as palavras de um dos personagens: “É incríveis demais, monstruoso demais; tais coisas não podem nunca existir neste mundo quieto… Ora, homem, se tal caso fosse possível, nossa terra seria um pesadelo”.

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Para aqueles que apreciam especulações em relação ao futuro, o conto de horror sobrenatural fornece um campo interessante. Combatido por uma onda crescente de realismo laborioso, leviandade cínica e desilusão sofisticada, ele ainda é encorajado por uma maré paralela de crescente misticismo, da forma como foi desenvolvido tanto através da reação fatigada de “ocultistas” e fundamentalistas religiosos contra a descoberta materialista, quanto através da estimulação do maravilhamento e da fantasia por panoramas ampliados e barreiras quebradas tais quais a ciência moderna nos deus, com sua química intra-atômica, astrofísica avançada, doutrinas da relatividade e sondagens na biologia e no pensamento humano.

Original.